Zé Keti
Zé Keti talvez seja um dos poucos que poderiam compor um verso que diz “Eu sou o samba / a voz do morro sou eu mesmo, sim senhor”. Bamba da melhor qualidade, José Flores de Jesus(1921-1999) na infância era “Zé Quieto” ou “Zé Quietinho”, por conta do seu temperamento mais introspectivo. Natural do bairro de Inhaúma, no subúrbio carioca, era neto do flautista e pianista João Dionísio Santana, que promovia saraus musicais em sua casa, frequentados por nomes como Pixinguinha e Cândido das Neves. Essa atmosfera musical, vivida desde cedo, moldou o ouvido e o coração de um artista que faria história como um dos grandes cronistas do povo do Rio.

Antes de ser reconhecido como um dos mais célebres sambistas da cidade,, Zé Keti exerceu diversos ofícios: foi operário, engraxate, lanterninha de cinema e até estivador no cais do porto. Essa vivência com o povo trabalhador alimentou o caráter de suas letras, marcadas menos pelas canções de amor e mais pela crítica social e pela valorização das favelas e dos subúrbios cariocas. Em 1955, seu samba “A Voz do Morro” embalou o filme Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, um marco do Cinema Novo. Além de compositor, Zé Keti atuou como segundo assistente de câmera e também como ator. O longa seguinte de Nelson, Rio, Zona Norte (1957), foi livremente inspirado em sua trajetória, com Grande Otelo interpretando o sambista Espírito da Luz — um tributo simbólico ao próprio Zé Keti.
Em 1962, criou o grupo A Voz do Morro, ao lado de Elton Medeiros, Paulinho da Viola (seu pupilo, como diziam), Anescarzinho do Salgueiro, Jair do Cavaquinho, José da Cruz, Oscar Bigode e Nelson Sargento. O conjunto se tornou uma verdadeira escola do samba moderno e lançou três discos que hoje são considerados documentos fundamentais da música popular brasileira.

Pouco depois, em 1964, Zé Keti participou do histórico espetáculo Opinião, ao lado de João do Vale e Nara Leão (que fez o convite ao sambista e depois substituída por Maria Bethânia). O show misturava música e teatro para demarcar uma oposição à ditadura militar, estabelecida meses antes do espetáculo, tornando-se um símbolo da resistência cultural e política da época. Foi nesse contexto que ele se afirmou como a “voz do morro”, levando o samba e as vozes do povo para o centro da cena intelectual brasileira.
Em 1965, lançou o samba “Acender as Velas”, um retrato pungente da desigualdade social e da vida nas favelas, que foi imortalizado na voz de Elis Regina. Outras composições de grande destaque incluem “Máscara Negra”, e “Diz que Fui por Aí”, parceria com Hortênsio Rocha, eternizada por Nara Leão e Zimbo Trio.
Na década de 1980, Zé Keti chegou a viver um período de ostracismo na música brasileira. Em 1987, teve o primeiro derrame cerebral. As dificuldades seguiram, até que, na década de 1990, sua obra foi novamente revisitada. Em 1996, o álbum “75 Anos de Samba” contou com a participação de Zeca Pagodinho, Monarco, Wilson Moreira e Cristina Buarque. Mas principalmente, a presença do cantor ao lado de Marisa Monte e da Velha Guarda da Portela, cantando clássicos do samba, reacendeu seu prestígio no cenário musical. Em 1998, ganhou o Prêmio Shell pelo conjunto de sua obra: mais de 200 músicas. O cantor e compositor morreu de falência múltipla dos órgãos aos 78 anos em 1999. Sua vida e obra, porém, são eternas. Verdadeiros hinos do cancioneiro popular, o samba em sua essência.

