Entre janeiro e março de 1904, João do Rio, um jovem repórter carioca, publicou uma série de reportagens intitulada “As Religiões no Rio”, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. Um sucesso na época, esses escritos ainda ecoam hoje, desencadeando debates importantes sobre as ambivalências, contrastes, afetos, violências, diferenças e conflitos que permeiam a cidade. A galeria propõe um olhar sobre os cruzamentos entre a fé e a festa no Rio, que se dão em romarias, promessas e oferendas às divindades, superstições e nos rituais cotidianos.

Assombrodevoção, festafurdunço e mercado: o que essas palavras dizem sobre as almas que perambulam por esse lugar? O que essas cinco pontas riscadas e cruzadas no chão da aldeia pode nos contar sobre a intimidade, sonho, sorte, peleja, magia, vida e morte dos moradores? Existem aqueles que dão um nome que tenta explicar tudo isso: religião. Como, entretanto, somos fiéis às quizumbas traçadas na aldeia, preferimos evocar os fundamentos do mistério.

Curadoria e textos: Luiz Rufino e Luiz Antônio Simas

Curadoria: Luiz Rufino e Luiz Antônio Simas

Sem santo e sem pecado, mas com muita peleja entre as intenções que encruzam céu e inferno, cidade e mata, casa e esquina, o Rio se tornou um verdadeiro fuzuê onde os mais diferentes modos de vida se esbarram e comem, cada qual a sua maneira, na mesma gamela. Por aqui se praticam ritos que riscam a cidade e jogam dendê na batina do padre, como o bloco “Chave de Ouro” fazia, ao celebrar os deuses da festa e do prazer em plena quarta-feira de cinzas. Um Rio de flor e faca, afago e esporro, uma cidade em que a quizumba pode baixar no mesmo corpo da poesia e da mandinga. Assim sendo, a Lapa é o melhor lugar para se fazer um santuário para o santo malandro que a cidade merece. Em seus arcos, esquinas, paralelepípedos, biroscas, postes e goles derramados no chão, vive a memória de muita gente que por ali passou e fez ela ser o que é; um verdadeiro furdunço.

No Brasil, as expressões de fé, a intimidade com o sagrado e o espanto com os ritos comunitários que trançam o que muitos chamam de religiosidade tem cor, gosto, cheiro, som, ritmo e corpo. Assim, não há ambiente mais propício para que essas coisas batam perna do que um bom e velho mercado. O Mercadão de Madureira, conhecido também como “mercado da macumba”, há de tudo para se fazer uma boa fé: da vela ao fumo às bancas do jogo do bicho, do santo cristão ao pagão. Aliás, se tem uma coisa que o carioca sabe fazer é negociar com santos: a intimidade com as santidades são seladas nas promessas — que hão de ser pagas, ninguém nega, tudo no seu tempo. Nas terras dos tupinambás encruzadas por assombrações, santidades e místicas que atravessaram o oceano aspectos como jogo, sorte e azar são cartas importantes do nosso baralho.  Nessa impressão do mistério enquanto jogo, quem muito trouxe para o imaginário e para a vida carioca são os povos ciganos, que evocam suas magias e costumes para dentro da cumbuca.

O Rio é mesmo um espaço onde a festa encontra morada certa. A partir daí, só se pode entender que os santos da cidade também são dados a uma boa folia. Se alguém por aí anda pregando o contrário, precisamos rever o caráter dessa santidade. Os cariocas, como não poderia ser diferente, acompanham o calendário da cidade sabendo que dia de santo é também dia de celebrar e festejar a vida e seus mistérios. No Rio, as escolas de samba se fazem como verdadeiras catedrais do samba, vibrando a espiritualidade da cidade do Rio de Janeiro, cantando seus assombros, espantos, sinas, sortes e, na virada do couro do tambor, chamando os andarilhos de ontem e de agora para celebrar o que há de mais sagrado: a festa.

Definitivamente  carioca é um povo mais dado às batalhas do que à salvação. Não por acaso o santo que mais ouve preces, promessas e segredos é um santo guerreiro em nosso andor, guardado nos altares domésticos e carregado por multidões em romaria por ser gente como a gente. Também o Rio é terra daqueles que se foram sem ir de fato, sendo esses mortos ilustres venerados em seus jazigos e lembrados com sentimento de fé por seus devotos. E como estamos no Rio de Janeiro, um palco propício para devoção são os estádios de futebol, em especial o Maracanã, que guarda nome de lenda tupinambá e onde a fezinha pelo milagre, sob a forma de um golzinho salvador, reina.

Andarilhar pelas ruas do Rio é como escavar o tempo ou mesmo improvisar um verso. Dessa forma, não é difícil a sensação de que o passado assombra o cotidiano do Rio de Janeiro e de que o futuro é uma espécie de aposta acesa em uma esquina. Os valentes originais daqui, tupinambás, crentes de que a morte no campo de batalha é a grande aventura que os eterniza no tempo, engoliram tudo aquilo que passou por eles. E mesmo que a história oficial não cante as saga dos tupinambás como mistério da vida, as onças ainda rugem, seja no pouco de mata que restou, mas também nos barracões de fé e folia. Entendemos que o Rio que se ergue na quizumba entre onças, ritos de bravura, santo flechado, demandas de além mar e seus carregos coloniais é uma terra livre do pecado onde, ao mesmo tempo ninguém é santo.

 

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