O carioca não é pacífico. A falácia desse mito se revela, ao navegarmos pelas 75 “memórias” que narram acontecimentos violentos, desde as guerras indígenas até os protestos de 2013. Conflitos civis, golpes de Estado, marchas, revoltas e motins desfilam diante dos nossos olhos, construindo uma outra narrativa sobre a cidade e seu povo.

Curadoria: Heloisa Starling

A História não começa com os portugueses – o Rio de Janeiro não era um espaço vazio a ser ocupado. Todo o litoral da baía de Guanabara estava tomado por grandes tabas. Cada taba era formada, no mínimo, por quatro malocas (a casa coletiva), dispostas ao redor de uma espécie de pátio chamado okara e circundadas por um sistema de fortificações. Os portugueses iniciaram a guerra contra os tupinambás, com o objetivo de ocupar o território e fundar uma povoação em março de 1560.

No século XVII, quando o Brasil ainda era uma colônia de Portugal, o Rio de Janeiro tomou um lugar de destaque e se tornou a cidade mais populosa da América portuguesa. Já no XVIII, a proximidade geográfica com Minas Gerais consolidou a cidade como o mais importante centro comercial e de escoamento do ouro que era explorado por aquelas bandas. Tanto que, em 1763, a sede da administração colonial foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro. Só que a história mostra que um aumento expressivo da população combinado à disputa por zonas de influência costuma ser acompanhado de intensos conflitos.

Em 1808, a corte portuguesa cruzou o Atlântico e se transferiu para o Rio de Janeiro. Elevada à condição de capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a decisão impactou profundamente o desenvolvimento da cidade – a única a sediar um império europeu fora da Europa. Foi assim que, durante o século XIX, o Rio se destacou como centro econômico e, sobretudo, político do país. Um palco e tanto para os conflitos que pipocaram pelas suas ruas. Afinal de contas, a capital do Império era o quintal do poder.

No fim do século XIX, o Rio de Janeiro deixou de ser a corte imperial para se tornar a capital da República. A mudança pode parecer um pequeno detalhe, mas representa uma transformação fundamental em termos políticos: os cariocas não eram mais súditos de um rei. A partir do 15 de novembro de 1889, eles passaram a ser considerados cidadãos. A Constituição de 1891 garantia esse direito no papel. Era preciso, porém, realizá-lo na prática. Para tanto, era preciso exercer a cidadania nas ruas da cidade.

Nas décadas de 1930, 1940 e 1950, a cidade do Rio de Janeiro era ainda a sede da administração federal. Foi, portanto, palco dos inúmeros embates e disputas políticas ocorridas no período, desde a chamada Revolução de 30, o Estado Novo, a deposição de Getúlio Vargas e seu triunfal retorno nas eleições de 1950. As agitações, contudo, não se restringiram aos gabinetes; as ruas da cidade maravilhosa também testemunharam revoltas, greves e muitos quebra-quebras.

Na década de 1960, Brasília já era a sede da administração federal; o Rio de Janeiro, contudo, permaneceu como centro nervoso da política nacional. Foi para lá que desceram as tropas do general Mourão Filho, no dia 31 de março de 1964, a fim de depor o presidente João Goulart, que passara as últimas semanas na cidade entre comícios e crises políticas. Se foi no Rio de Janeiro que os militares desfecharam o golpe, foi ali também que receberam as maiores manifestações de repúdio ao regime. Nos 21 anos que se seguiram, a cidade confirmou sua importância no cotidiano político e social do país.

Na década de 1980, não foram poucas as vezes em que um acontecimento de relevância nacional se tornou a senha para que amplos setores sociais tomassem as ruas do Rio de Janeiro. Ocupar as ruas e praças era uma ação efetiva, utilizada como forma de acesso ao debate, quando todos os outros dispositivos de diálogo estavam fechados. Passeatas, piquetes e protestos de rua são estratégias de ocupação do mundo público empregadas pelos novos atores políticos que inauguraram a Nova República no Brasil.

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