A cidade desce o morro

A irregularidade da cidade erguida no Morro do Castelo contrastava com a regularidade daquela que começava a se formar na várzea, com demarcação e abertura de ruas de trinta palmos. No sopé do morro, foram construídos o Forte de São Tiago e o hospital da Santa Casa de Misericórdia. É a partir da instalação da Santa Casa que surge a rua da Misericórdia – a primeira via aberta na parte baixa da cidade. 

Nas palavras de Paulo Barreto – o João do Rio –, da rua da Misericórdia “partimos todos nós; nela passaram os vice-reis, os malandros, os gananciosos, os escravizados, os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a flor da influência jesuítica… Dela brotou a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço, dela decorreram, como de um corpo que sangra, os becos humildes e os coalhos de sangue, que são as praças ribeirinhas do mar.

Rua da Misericórdia por volta de 1928. Foto de Augusto Malta. Acervo: Instituto Moreira Salles

A rua da Misericórdia ia em direção à região da Lapa, de um lado, e do outro encontrava a rua Direita, no Largo do Carmo. E assim estava delineado o núcleo urbano da cidade, entre as ruas da Misericórdia e Direita, e o Largo do Carmo. 

A Direita era um prolongamento natural da Misericórdia – basicamente a mesma rua que, originalmente, era chamada Caminho de Manoel de Brito. A via se estendia até a Prainha (atual Praça Mauá) e fazia a ligação entre os morros do Castelo e de São Bento. Foi a via mais importante da cidade até o século XIX. No tempo em que a região era à beira mar, chamavam-na, também, rua da Praia.

Rua Direita, a mais importante do Rio de Janeiro até o século XIX. Imagem atribuída a Félix-Émile Taunay, 1823. Brasiliana Iconográfica

Até os anos 1800, o centro do comércio, os hotéis e as primeiras casas de pasto (estabelecimentos que antecederam os restaurantes) da cidade, ficavam na Rua Direita que, em 1875, passou a se chamar Primeiro de Março, em homenagem à vitória brasileira na batalha que marcou o fim da Guerra do Paraguai: a Batalha de Aquidabã.

A rua Direita em 1895, já transformada em 1º de Março e com os trilhos do bonde. Pintura de Benno Treidler. Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo

Já o Largo do Carmo, foi o primeiro centro urbano da cidade e se chamou, inicialmente, Praia da Piaçaba, mudando de denominação ao longo do tempo: foi Largo do Terreiro da Polé – onde existia o Pelourinho da cidade; Largo do Carmo; Terreiro do Paço; Largo do Paço e, finalmente, Praça XV de Novembro, já no período republicano.

Até a década de 1770, o Largo do Carmo combinava as funções de porto comercial e principal lugar de desembarque de africanos escravizados. A partir da determinação do Marquês do Lavradio (Vice-rei de 1769 a 1778), deixou a função de porto escravista e assumiu a condição de área “nobre”, tornando-se a referência de centralidade na cidade até o século XIX.  

Largo do Paço com o chafariz do Mestre Valentim no centro e a Igreja do Carmo da Antiga Sé ao lado da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, ao fundo. Carlos Linde, c. 1860. Coleção Brasiliana Itaú

Por sua importância como núcleo urbano, a medida que a estrutura administrativa da cidade migrava do alto do Morro do Castelo para a várzea, foi no Largo do Carmo que os prédios públicos foram construídos – tais como o Palácio dos Governadores, a Casa da Moeda e a Casa da Câmara e Cadeia.

A cidade tomou forma com as ruas transversais à rua Direita: Rua do Antônio Nabo (Rua São José), Rua dos Pescadores (Visconde de Inhaúma) e a Rua Detrás do Carmo (Rua do Carmo). As primeiras casas residenciais na várzea apareceram por volta dos anos 1630 e na transição entre os séculos XVI e XVII os atuais bairros de São Cristóvão, Irajá e Inhaúma começaram a ser habitados. 

Referências:

BRASILIANA Fotográfica. Série Avenidas e ruas do Brasil  XV – Misericórdia, rua, largo e ladeira, no Rio de Janeiro, por Cássio Loredano. Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/

_______________. Série “O Rio de Janeiro desaparecido” XXII – A Cadeia Velha, que deu lugar ao Palácio Tiradentes. Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br

GERSON, Brasil. História das ruas do Rio. 6a edição. Bem-te-vi produções literárias: Rio de Janeiro, 2013.

GRANDELMAN, Luciana Mendes. A Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro nos séculos XVI a XIX. História, Ciências, Saúde Vol. VIII – set-dez. 2001

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