Palácio de São Cristóvão (Quinta da Boa Vista)

Se as paredes do Palácio de São Cristóvão (ou, a Quinta da Boa Vista) pudessem contar o que foi dito e discutido em seus salões e arredores, durante os anos da Independência, narraria o íntimo das decisões que levaram ao processo de emancipação política. Isso do ponto de vista da Corte, que buscava afirmar seu projeto unitário e centralizador em torno de d. Pedro Muito mais do que endereço onde a família real vivia, ali era um espaço de decisão como nenhum outro no Brasil de então. Das reuniões entre os conselheiros mais próximos a planos confessados em diários pessoais, a Independência do Brasil e o Palácio de São Cristóvão guardam íntima relação.

A história da Quinta da Boa Vista está ligada diretamente à vinda da família real para o Rio de Janeiro. É verdade que, antes de 1808, a mansão já estava ali em São Cristóvão — uma região de chácaras e palacetes, longe do centro da cidade. Mas aquele casarão não possuía o status de Palácio Real, nem as intervenções pelas quais passou nas décadas seguintes.

Figura 1 — O Palácio de São Cristóvão (Quinta da Boa Vista)
e suas progressivas reformas, Jean-Baptiste Debret, 1839,
Fundação Biblioteca Nacional [icon393054_154]

Quando d. João VI migrou com a corte do reino de Portugal para o Rio de Janeiro, o príncipe regente não pensava em ficar muito tempo no Brasil. Fosse por uma derrota das forças napoleônicas, ou qualquer outro motivo, estacionar nos trópicos — quentes, cheios de insetos e onde eram faltava tudo (ou muito) do que lhe era familiar — não parecia ao príncipe uma ideia digna de celebração. A vinda da família real foi inesperada, de modo que d. João foi acomodado provisoriamente no Paço Real, junto com o restante da família.

Não demorou muito para o príncipe regente se incomodar com a precariedade do espaço — ao menos se comparado com o luxuoso Palácio de Queluz, sua última morada em Portugal. Elias Antônio Lopes, um rico comerciante e traficante de escravos português, percebeu o embaraço da situação e resolveu agir — não por pura benevolência ao augusto rei, mas em causa própria. “Doou” — com muitas aspas — à Coroa uma mansão de sua propriedade, localizada nos subúrbios da cidade. Era espaçosa, com jardins e áreas de passeio, longe da algazarra do centro da cidade. Ou seja, o oposto do Paço Real.

Em troca da “gentileza”, d. João VI concedeu a Elias Lopes títulos de nobreza e uma pensão vitalícia. A nova morada tinha ainda outra vantagem para d. João: ele poderia morar longe da rainha, Carlota Joaquina — com quem, é sabido, não se dava nada bem. A rainha permaneceu com seu séquito no largo do Paço, ocupando as dependências que antes eram o Convento do Carmo.

O Palácio de São Cristóvão recebeu sucessivas melhorias desde então. O par de escadas em curva logo na entrada não constam nos registros originais da chácara. Os portões da entrada — uma das marcas registradas do palacete — foi um presente dado pelo quarto duque de Nothumberland e embaixador inglês, Lord Percy. O palácio também se expandiu em ocasião dos preparativos do casamento entre o príncipe d. Pedro e a arquiduquesa da Áustria, Carolina Josepha Leopoldina, em meados da década de 1810.

Os jardins ao redor do palácio foram ampliados, caminhos para se andar foram calçados; mas, principalmente, os acessos ao palácio foram aprimorados. Afinal, para se chegar à Quinta da Boa vista era preciso ir além do Campo de Santana — um descampado que até então demarcava os limites da cidade. Era preciso cruzar as águas, atravessando o trecho onde o curso era mais estreito, por uma pequena ponte de pedra, em forma de arco.

Figura 2 — Planta da cidade do Rio de Janeiro [detalhe],
Villiers de L’Ile-Adam, 1850, Fundação Biblioteca Nacional [cart161233]

Após d. João fixar residência, um quartel foi montado nas proximidades da Quinta — por motivos óbvios. Esse batalhão era estratégico, e era fundamental que fosse de plena confiança de d. Pedro. Quando ainda era príncipe regente, d. Pedro enfrentou um motim liderado pelo general Jorge de Avilez, que pretendia forçá-lo a obedecer a ordem expedida pelas Cortes de Lisboa para que voltasse imediatamente para Portugal. Ele não precisou se certificar duas vezes da lealdade da guarnição da Quinta da Boa Vista . Apesar disso, quando chegaram a São Cristóvão as notícias do levante promovido pelas tropas fiéis ao general Avilez, d. Leopoldina e seus filhos tiveram de sair em fuga do palácio, enviados para a Fazenda Santa Cruz — de propriedade da Coroa, a 12 léguas da capital. Ao que consta, os improvisos da escapada causaram o adoecimento e morte de um de seus filhos, João Carlos Pedro Leopoldo Borromeu de Bragança, então com 11 meses, algumas semanas depois.

A distância do Palácio de São Cristóvão até o Paço Real (chamado de Imperial após outubro de 1822) não foi impedimento para que, no período em que se desenrolou o processo de independência do Brasil, decisões, despachos, reuniões e deliberações ocorressem nos dois espaços. Enquanto os ministros e demais funcionários públicos trabalhavam — e, em alguns casos, moravam — no Paço localizado na atual praça XV, d. Pedro se reunia com seus conselheiros mais próximos nas dependências da Quinta da Boa Vista. Impossível precisar quantas importantes decisões foram tomadas naqueles salões. Mas é possível imaginar o vai-e-vem de cavalos e carruagens que percorriam o caminho que levava até o Palácio de São Cristóvão.

As cores do palácio ganharam novo significado após a Independência. As paredes em amarelo e janelas, toldos e corrimões em verde. A combinação que logo se tornou símbolo pátrio era justamente a cor dos Bragança (verde) e dos Habsburgo (amarela), as dinastias das quais faziam parte o imperador e a imperatriz, respectivamente. Ao que consta, os tons já ornavam o prédio desde o casamento de d. Pedro e d. Leopoldina; mas após 1822, despertavam mais um sentimento patriótico do que mera reverência à realeza.

Figura 3 — Vista do Rio de Janeiro tirada do Palácio de São Cristóvão [detalhe], Friedrich Salathé, c.1840, Fundação Biblioteca Nacional [icon334952]

Após a Independência, d. Pedro I se empenhou em ampliar ainda mais sua residência. Afinal, ela seria uma marca, espécie de extensão ou demonstração de seu poder enquanto imperador. A mansão, que já possuía um torreão na ala norte do palácio, ganhou outra no lado sul, de estilo neoclássico — estilo diferente da outra torre, fazendo do Paço de São Cristóvão um dos primeiros exemplos de construções ecléticas de que se tem notícia no século XIX. A opção arquitetônica se justifica no sentido de remeter às clássicas construções reais, moradas de outros soberanos, nos quais d. Pedro se inspirava.

A Quinta da Boa Vista permaneceu a residência principal da família real até o fim da monarquia. Com a implementação da República no Brasil, o Palácio de São Cristóvão foi reapropriado e convertido nas dependências do Museu Nacional — uma inclinação que já possuía desde quando d. Leopoldina trouxe da Europa seu “gabinete de curiosidades”, espécie de precursor do modelo de museus atuais, ou quando d. Pedro II trazia diferentes artefatos e relíquias de suas viagens ao exterior. No entanto, um incêndio consumiu boa parte do prédio e do acervo do museu, em 2018, causando perdas irreparáveis para a memória do Rio de Janeiro e do Brasil.

Referências Bibliográficas

BANDEIRA, Julio, LAGO, Pedro Corrêa do. Debret e o Brasil: obra completa. Rio de Janeiro: Capivara, 2020.

ENDERS, Armelle. A história do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gryphus Editora, 2015.

MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles (Orgs.). Monarquia, liberalismo e negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013.

PEDREIRA, Jorge Miguel Viana; COSTA, Fernando Dores. D. João VI: um príncipe entre dois continentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

SHULTZ, Kristen. Versalhes tropical: Império, monarquia e a Corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Este texto foi elaborado pelo pesquisador Davi Aroeira Kacowicz.

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