Os cortiços e as hospedarias
Com as modificações ocorridas a partir da segunda metade do século XIX, a cidade cresceu qualitativa e quantitativamente. Entre 1872 e 1890, a população quase dobrou, passando de 275 mil para 523 mil habitantes. Esse adensamento, somado às epidemias e à insuficiência de serviços urbanos, aumentou a condição de cidade febril do Rio de Janeiro. A subsequente crise habitacional, ampliada pelo aumento das migrações e pela sucessiva liberação da massa escravizada, provocou uma busca por formas de morar que resultaram em tipos de habitações coletivas e alteraram radicalmente a paisagem urbana, em especial, no centro antigo.
Aos poucos, as epidemias e o adensamento populacional fizeram com que as elites se retirassem do centro levando à ocupação das moradias abandonadas por cortiços, hospedarias e pensões. As pensões atendiam à demanda de estudantes e profissionais liberais que vinham se instalar na cidade, mas também serviram para lugar para a prostituição – em geral, “as polacas” agenciadas por “madames” que utilizavam nomes franceses.
As hospedarias atendiam a um público que começava a ingressar no trabalho do porto e ficavam próximas às regiões da Saúde e Gamboa. Já os cortiços concentravam-se em várias regiões, da Cidade Nova ao centro antigo e reuniam famílias que vinham para a cidade em busca de trabalho e famílias de ex-escravizados. Em 1868, só na freguesia de Santana havia mais de 150; em 1884, na mesma região, o número de cortiços chegava a 392.
Baía de Guanabara vista do Morro do Castelo. Marc Ferrez, 1890 circa. Rio de Janeiro, RJ – Instituto Moreira Salles.
O público que habitava essas moradias exercia atividades formais – como operários de diversas fábricas – e informais. Muitos trabalhavam nas ruas como vendedores de carnes verdes, perus, flores e de leite. O leite era vendido de casa em casa e a bebida era retirada na hora das vacas e suas crias que seguiam os vendedores. Estes serviços, acrescidos aos animais que puxavam os bondes, contribuíam para o mal cheiro e sujeira da cidade.
Rua 1° de Março (antiga rua Direita), 1890 circa. Rio de Janeiro, RJ – Instituto Moreira Salles.
Aos pés do Morro da Providência existiu um dos cortiços mais famosos da cidade, o “Cabeça de Porco” – na freguesia do Sacramento – que existiu por cerca de 50 anos. No portão frontal, uma cabeça de porco trabalhada em ferro ornamentava a entrada, imagem que deu origem ao nome e ao termo genérico usado para designar os cortiços cariocas.
Quase um bairro, a estalagem contava com um longo corredor central, duas alas com mais de cem casinhas e outras “ruas”, com mais casas. A parte de trás dava para o atual morro da Providência, próximo à Estação Terminal da Estrada de Ferro Central do Brasil. Parecia um grande bairro, suspeitava-se que pertencia ao Conde D’Eu, marido da princesa Isabel, cujo capataz dirigia o cortiço.
A partir da metade do XIX, o medo das revoluções escravas que eclodiram no Brasil aumentou a preocupação com as habitações populares. Alinhada ao discurso higienista, a Câmara Municipal criou uma série de posturas que visavam dar fim às estalagens, principalmente a partir dos anos 1870.
Para acelerar a mobilidade da circulação com o porto, o empresário e engenheiro ligado à construção civil (e futuro prefeito da cidade, 30 anos depois, na década de 1920), Carlos Sampaio, propôs, ao lado de seu sócio Vieira Souto, um projeto de construção de um túnel que atravessaria o morro e facilitaria as importações e exportações, mas o Cabeça de Porco ficava no meio do caminho, impedindo o traçado. Foi então que o prefeito Barata Ribeiro, que travava uma guerra contra os cortiços, resolveu acabar com o Cabeça de Porco, elaborando uma grandiosa ação que mobilizou a polícia e o exército, além dos trabalhadores, na demolição.
“O Sr. Dr. Barata Ribeiro, digno prefeito, que não sabe o que são embaraços, quando se trata de cumprir a lei, e que, se continua n’este caminho, está destinado a prestar serviços inolvidáveis à nossa cidade, mandou há cinco dias intimidar os habitantes do cortiço a despejarem-n’o, a hontem, expirando o prazo, procedeu-se à demolição da estalagem”. (Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro. 27 de Janeiro de 1893. Nº 26. XIXº Anno, p.1)
Moravam ali entre 2 e 3 mil pessoas. A demolição foi tratada como um grande espetáculo pela imprensa e pela população, que acompanhou a ação encampada por Barata Ribeiro. No dia da demolição, em 26 de janeiro de 1893, em frente ao nº 154 da Rua Barão de São Félix, um aglomerado de gente acompanhou a demolição.
Quando as paredes começaram a ruir, os moradores bateram em retirada, em profundo desespero, com aquilo que podiam salvar. Alguns acabaram montando seus casebres no morro da Providência, que receberia os soldados egressos da Guerra de Canudos quatro anos depois, em 1897. Como bem pontua Sidney Chalhoub, em seu livro Cidade febril: “nem bem se anunciava o fim da era dos cortiços, e a cidade do Rio já entrava no século das favelas” (p. 20, 2017).
No dia seguinte, o desenho de uma cabeça de porco numa bandeja, sendo comida por uma barata aparecia estampado nos jornais.