O “sertão” se urbaniza
Até meados do século XVIII, era a rua da Vala (atual rua Uruguaiana) que definia os limites da cidade. Tudo o que havia para além dela eram descampados lamacentos, locais de pastagem para animais e depósitos de dejetos. A área era conhecida como Campo da Cidade e se estendia até o Mangal de São Diogo (ou Saco de São Diogo), na região da Cidade Nova. Junto a outra área pantanosa e alagadiça bem próxima – o Campo dos Ciganos (posteriormente Rossio Grande e hoje, Praça Tiradentes) – o Campo da Cidade era frequentado apenas pelos “infames pela raça ou religião” – ou seja, negros escravizados ou livres, ciganos e degredados.
Quase única a circular pela região até meados dos anos 1700, essa parcela marginalizada da população acabou induzindo a transposição do muro iniciado por João Massé em 1713, a partir da instalação de suas moradias e igrejas. Irmandades católicas negras construíram capelas em devoção a Nossa Senhora do Rosário (rua da Vala, 1725), Nossa Senhora da Lampadosa (Rossio Grande, por volta de 1748) e Santa Ana (nas imediações do Campo da Cidade por volta de 1735). Foi esta última a responsável por rebatizar a região, que passou a ser chamada de Campo de Santana.
Aos poucos, surgiram casas baixas nas imediações – lares de ciganos e trabalhadores livres e pobres – e o crescimento populacional “empurrou” a cidade em direção aos “sertões”, até então ocupados apenas por algumas chácaras e mansões particulares. Os chamados sertões eram as regiões além do Campo da Cidade, alcançadas por caminhos que contornavam as áreas alagadiças e chegavam aos engenhos que “ficaram conhecidos como Engenho Velho, Engenho Novo e Engenho de Dentro” (SCHLEE, 1999, p. 30).
A partir da chegada da família real portuguesa (1808), o adensamento populacional tornou a expansão territorial inevitável – entre 1808 e 1821, a população carioca passou de cerca de 50 mil pessoas para cerca de 120 mil. Os sertões foram urbanizados e o Campo de Santana deixou de ser uma área pantanosa evitada pela elite econômica, para se tornar um local de diversão. Recebeu torres iluminadas, uma arena para realização de touradas e um novo palacete real — com direito a jardim e passeio, além de um chafariz com 22 bicas, abastecido pelas águas do Rio Maracanã.
O local ainda foi palco e cenário de importantes eventos, como a aclamação do imperador D. Pedro I (1822) e a Proclamação da República (1889). No final do século XIX, o Campo de Santana foi modernizado por Auguste François Marie Glaziou e ganhou uma paisagem inspirada nos parques românticos parisienses.
Mas a expansão em direção aos sertões representou, também, o acentuamento das diferenças sociais. As casas baixas do Campo de Santana contrastavam com os sobrados da rua Direita. Ciganos e judeus pobres passaram a ocupar as áreas de brejos e pântanos para além da região. Uma outra cidade se desenhou na periferia da cidade barroca. A miséria e a pobreza ganharam espaço e determinaram um processo de exclusão que se renova até os dias atuais, transformando o Rio numa “cidade partida”.
Referências:
PIMENTEL, Márcia. Campo de Santana: o lugar que viu o Império e a República nascerem. Portal MultiRio. Disponível em: https://www.multirio.rj.gov.br/index.php/reportagens/13262-campo-de-santana,-o-lugar-que-testemunhou-o-nascimento-do-imp%C3%A9rio-e-da-rep%C3%BAblica
SCHLEE, Mônica Bahia. Cenografia urbana e qualidade ambiental na cidade do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1999
VERNIN, Lenna Carolina Solé. Campo de histórias e a batalha pela memória: o curioso caso da Praça da República. Anais do Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da ANPUH-Rio: História e parcerias. 2018