Um céu de pipas
Poucas cenas expressam o subúrbio carioca com tanta significação como um mosaico de pipas no céu. A dança das rabiolas, as manobras arrojadas do papagaio, os pontinhos coloridos no firmamento. Porém, essa característica tão presente no imaginário popular quando o assunto é o subúrbio do Rio pode ser vista hoje em termos de resistência. O mundo já não é mais o mesmo de décadas atrás, e os “pipeiros” passaram a se organizar de modo a manter viva essa tradição.
Por exemplo: para driblar a falta de tempo que a nova dinâmica entre vida e o trabalho impõe a quem tem de se deslocar por longas horas e quilômetros — algo que todo suburbano se relaciona —, muitos estão optando por soltar seus papagaios à noite. No Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste, por exemplo, das 20h até a madrugada a praia se enche de pipeiros. Numa frente mais “institucional”, em 2021 foi instituído pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro o “dia da pipa” (29 de junho). Há de se mencionar também a criação de associações, como a Liga Carioca de Pipa Esportiva — que organiza oito campeonatos estaduais, um nacional e um internacional todos os anos — e a APERJ (Associação de Pipas Artísticas e Esportivas do Estado do Rio de Janeiro).
Mas principalmente, uma grande conquista dos pipeiros tem sido a destinação de espaços públicos para a realização de festivais e competições (os chamados pipódromos, reconhecidos por lei desde 2019). O potencial de se transformar lugares abertos, porém sem um uso delimitado em pipódromos, representa a manutenção dessa tradição tão cara aos subúrbios cariocas. Encontros e sociabilidades são estabelecidas nesses espaços. Vai-se instituindo tradições, como os festivais de final-de-semana nos bairros da Abolição, Água Santa, Maria da Graça, Cachambi, Inhaúma e Marechal Hermes. A Serra Alta, em Campo Grande, é palco do Festival de Pipas Rio x SP, com pipeiros dos dois estados — a edição de 2014 juntou aproximadamente 15 mil pessoas. Em São Gonçalo, milhares de pessoas se reúnem dentro e fora do Clube Mauá anualmente para fazer um verdadeiro espetáculo no céu. São competições onde se premia o mais belo e o mais criativo dos papagaios, campeonatos para testar a destreza de quem empina melhor sua pipa e festivais que buscam simplesmente reunir os pipeiros.
O que se percebe é uma progressiva profissionalização do que antes era tratado apenas como brincadeira. Mas ainda há o lúdico, a poesia visual que a dança das rabiolas empinadas no céu provocam em quem assiste e pratica o ato. Crianças e adolescentes, mas também advogados, médicos, empresários… um encontro de gerações e mundos distintos em torno de um ponto comum, tão característico do universo imagético do subúrbio carioca: um punhado de pipas riscando o céu.