Imagens e imaginários do subúrbio

Estrada da Pavuna, Augusto Malta, c.1918. Fonte : “O Rio de Janeiro de Lima Barreto Volume II”, Affonso Carlos Marques dos Santos

Por volta de 1918, Augusto Malta — um dos mais notórios fotógrafos a registrar o Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX —, mirou e tirou um clique de uma estrada, na Pavuna. A foto dificilmente constaria numa exposição com as mais belas imagens de Malta, é verdade. Afinal, ela traz apenas uma rua de terra batida, deserta, ladeada de um lado pelos trilhos do bonde e do outro apenas o mato alto e algumas casinhas ao fundo. Mas essa fotografia diz mais do que pode parecer.

O que pode ter chamado a atenção de Malta para fazê-lo fotografar aquele aparente nada? Talvez o registro se explique pelo fato justamente desse “vazio” contrastar com o grande fuzuê (pretensamente) civilizatório que o governo imprimira no “outro lado” da cidade, desde a entrada dos 1900 — transformações que o próprio Malta documentou com destreza e intimidade. Portanto, o imaginário sobre o subúrbio foi, historicamente, construído sob um ângulo daquilo que é precário, defasado, da falta. 

Quase quarenta anos depois da foto de Augusto Malta, a mesma região aparecia estampada numa reportagem do Correio da Manhã. Abaixo da  manchete “Pavuna clama contra a omissão das autoridades” uma fotografia mostrava o lamaçal com o qual aquela população convivia regularmente. Apenas um exemplo trivial de um sem-número de imagens que acabaram por construir o imaginário coletivo sobre o subúrbio enquanto um local de abandono. A sujeira, a insalubridade, a violência, o avesso do avanço: assim parecia a vida suburbana aos olhos dos setores que detinham os recursos midiáticos para veicular essas imagens. 

Moradores da Pavuna, autor não identificado. 1964. Arquivo Nacional/Acervo Correio da Manhã [BR_RJANRIO_PH_0_FOT_00675_d0071de0143]

Essa disputa no campo da imagem sobre a percepção afetiva acerca do universo suburbano carioca passou a mudar nas últimas décadas. Se tradicionalmente, os subúrbios do Rio foram representados sob o estigma da ausência, ela nunca fez juz ao mosaico imagético-afetivo que compõe a vida suburbana — múltipla, repleta de miudezas sentimentais, do comum, do espontâneo. Nesse duelo travado no campo das ideias, há cada vez mais uma busca de uma necessária ressignificação dessa maneira de ver e representar essa geografia sensível. e quem vem ganhando espaço nesse processo de construção de imaginários é a própria população habitante dos subúrbios.

A produção de fotógrafos contemporâneos, como Roberta Domingos e Bruno Veiga, são exemplares da importância de se apresentar esse subúrbio num sentido contrário daquele que por décadas foi hegemônico. As dificuldades materiais deixam de ser um ângulo único, dando lugar à uma poesia do comum: uma pipa no céu, os botecos com mesas de plástico, as cadeiras na calçada, elementos arquitetônicos como os cobogós e gradis, os festejos religiosos sincréticos (São Jorge, São Sebastião e São Cosme e São Damião), os bate-bolas em campos de várzea e cimentados em quadras públicas, a cultura do samba, a rua como elemento reivindicador dos modos de vida: espaço de devoção e celebração dos encontros.

 Futebol em Guadalupe, Foto de Roberta Domingos.

Mostras, publicações, oficinas e outros eventos têm disseminado a prática da fotografia do, no, e para o subúrbio. E para além das qualidades técnicas de um registro fotográfico, o que conta de fato é o pedaço de vida que está ali representado. Afinal, a produção de uma autoimagem é condição essencial para a construção das identidades sociais e, consequentemente, para o exercício pleno da cidadania. 

Cadeiras na calçada em Marechal Hermes, Foto de Roberta Domingos.

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