Irajá

Um dos mais representativos bairros do Rio de Janeiro, berço de sambistas e poetas, Irajá é uma das regiões da cidade que permaneceram com a designação original de uma das comunidades indígenas ancestrais da terra, já anotada nas fontes desde a época da presença dos franceses, em meados do século XVI. O nome deste bairro é uma das mais fortes heranças deixadas pelos nativos tupinambás. O carioca ou morador de Irajá que se interessar a ler Uma viagem à terra do Brasil, livro do viajante francês Jean de Léry, publicado em 1578, irá se surpreender com a menção a uma taba da Guanabara de nome Eiraiá, citada na primeira lista de aldeias de Léry. Essa lista foi reproduzida em seu livro a partir de anotações de um truchement (como eram chamados os franceses que permaneciam na Guanabara, vivendo junto aos indígenas), que já vivia por aqui desde meados da década 1540. 

Eiraiá se localizava na margem esquerda da baía, sendo a quinta aldeia enumerada entre aquelas que estavam mais próximas do litoral. Ao seguir a margem esquerda da Baía de Guanabara e passar pela foz do conjunto de rios e ribeiros que formam hoje o Faria-Timbó (antigo rio Inhaúma, do qual viviam os habitantes de EiramirĩPirakãiopã e, mais ao interior, Piraûasu), chegava-se aos manguezais que caracterizavam essa parte do litoral. Percorria-se então esse trecho, que é paralelo às atuais Ilhas do Fundão e do Governador, passando alguns córregos. Em seguida, surge outro grande estuário: do rio que, não por outra razão, os portugueses conheceram e denominaram em seus mapas como o rio Irajá. O nome original deste rio, que perpetuou a designação daquelas terras, nada mais era do que o nome da taba dos tupinambás que habitavam aquela região desde tempos imemoriais. Eles se serviam desse rio para ir e voltar à aldeia. 

Ainda hoje existem os que reproduzem uma explicação colonial a respeito desses topônimos, ocultando a existência desta aldeia ancestral. Como em boa parte das explicações “populares” sobre os nomes mais antigos do Rio, nota-se o objetivo de incorporar uma herança portuguesa na origem dessas nomenclaturas. Diz-se que, quando os primeiros engenhos de açúcar começaram a ser introduzidos nessa parte da baía, os tupinambás escravizados que ali trabalhavam teriam se surpreendido com o melaço da cana, dizendo que aquilo parecia o mel que tanto conheciam.

O nome de Eiraiá em tupi antigo é formado por Eira-iá (Eirá pode designar tanto o mel quanto a abelha; iá é um sufixo que exprime totalidade, abundância ou, simplesmente, “cheio”). Sinônimo de fartura, Eiraiá era a comunidade “repleta de mel” dos tupinambás. Certamente fazia alusão a essa característica do local, que tinha natureza e fauna exuberantes, com fartura de pesca e caça, bem como a grandes colmeias de abelha nativa (chamadas “abelhas cachorro” ou “abelhas pretas”), que se aproveitavam do néctar disponível na Mata Atlântica para fornecer mel em profusão aos seus vizinhos. Além do néctar alimentar, o mel era usado como cola, resina e outras utilidades cosméticas.

Como corruptela, Eirá se transformou em “Ira”, em português e a terminação  em “já”. A aldeia de Eiráîá é, portanto, a origem do bairro do Irajá. Estima-se que a localização de Eiraiá se encontra ao longo do curso do atual rio Irajá, antes navegável e repleto de vida, e que abrange as terras dos atuais bairros de Cordovil, Brás de Pina, Vista Alegre e do próprio atual Irajá, desaguando na Baía de Guanabara, à altura do fim da Ilha do Governador. 

A aldeia Eiraiá como característica das comunidades indígenas da Guanabara situava-se próxima do rio, mas em área elevada, por precaução dos constantes alagamentos. O ponto central de toda essa região é justamente a igreja mais antiga do Rio de Janeiro, a Igreja da Nossa Senhora da Apresentação do Irajá de 1613, que fica no alto de um planalto, a poucos metros do rio Irajá. É possível que a capela que deu origem a esta igreja foi erguida na taba indígena de Eiraiá, ponto inicial da ocupação colonial e centro de dispersão da conquista da região.

Toda essa área foi ocupada e devastada por imensos canaviais nos primeiros cem anos da colonização portuguesa. O nome da aldeia para designar a região se popularizou nos anos seguintes para designar a vasta terra a partir daquele rio. Com o aumento do número de engenhos de cana, surgiu ali também um importante porto de escoamento da produção de açúcar: um movimentado entreposto onde se embarcavam as caixas de açúcar e que ficou conhecido como o Paço do Irajá. 

O local era diferente dos demais depósitos da época por ser um ponto de convergência dos caminhos que serviam aos inúmeros engenhos terra adentro, com um armazém imponente e casa de vivenda ao lado. Já existia formalmente como lugar de cobrança de impostos e armazenagem dos caixotes de derivados da cana, que dali seguiam em lanchas e pequenas embarcações, para os navios ancorados dentro da baía, ao menos desde a década de 1660.

Irajá chegou até mesmo a virar uma comenda de prestígio e valor na época do Império brasileiro, que buscava nas origens pátrias, pré-portuguesas, promover o resgate dos nomes nativos e a valorização da cultura do país. Por conta disso, Manuel do Monte Rodrigues de Araújo, político e capelão-mor dos imperadores D. Pedro I e D. Pedro II, foi condecorado como conde de Irajá, por meio do decreto de 25 de março de 1845. Esse cidadão provavelmente nem imaginava o que a insígnia realmente podia significar e carregou como status de autoglorificação o título nobiliárquico da aldeia repleta de mel do Rio de Janeiro.

A taba original de Eiraiá impôs sua herança cultural por meio da força construtiva que seu nome carrega. Um topônimo tão carioca, tão brasileiro, tão Irajá, cantado em muitas músicas populares. De seu nome ancestral e de suas terras originárias, hoje emerge uma parte da cidade que tanto caracteriza o Rio de Janeiro raiz, do povo humilde e trabalhador, e que, como os tupinambás, são também exímios musicistas e guerreiros, que sabem como ninguém fazer uma festa regada a cerveja – o cauim de hoje. 

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