Escritas de uma cidade partida

Apesar de suas tramas e personagens se espalharem por diferentes áreas, cores e classes da cidade, demorou muito tempo para que autores e autoras cariocas dos morros e partes mais pobres da cidade surgissem. Com as exceções – e que exceções! – de Machado de Assis, negro e nascido no morro do Livramento, e Lima Barreto, negro e do subúrbio, a maioria dos escritores do Rio vivia no centro ou zona sul e tinha origem em famílias burguesas. Com as transformações que a sociedade brasileira e carioca vem sofrendo nas últimas décadas, cada vez mais, esse quadro tem se alterado.

Roupas no varal de um cortiço do Rio de Janeiro em 1950. Foto de Marcel Gautherot – Acervo Instituto Moreira Salles 

Em um primeiro momento literário da cidade, o Rio de Janeiro das classes mais pobres foi retratado majoritariamente por suas elites (financeiras e intelectuais), mas também por escritores de classes sociais mais baixas que vivenciavam diferentes mundos da cidade carioca e de suas populações marginalizadas. Tais retratos, eram feitos muitas vezes pelo viés racializado da violência e da vadiagem, pela costura entre legalidade e ilegalidade presente nos personagens da malandragem ou pela trajetória de bandidos que atingiram o status de anti-heróis. É o caso de livros como O cortiço, lançado em 1890 por Aluízio Azevedo, passando pela obra singular Desabrigo, publicada por Antônio Fraga em 1945, até chegarmos a romances-reportagens dos anos 1970, como Lúcio Flávio – passageiro da agonia, lançado por José Louzeiro em 1976. Em todos, a cidade vira as costas para o mar e se mostra um espaço de tensões e crimes.  

No estilo de romance e conto policial o Rio produziu, desde o apelo explícito ao mundo da criminalidade violenta entre diferentes classes sociais – nas obras de Rubem Fonseca e Patrícia Melo – até a literatura policial de apelo psicológico na Copacabana noir dos livros de Luis Alfredo Garcia-Roza.

Com a publicação, em 1997, de Cidade de Deus, de Paulo Lins, a literatura sobre a violência carioca começou a ganhar novos ângulos. O autor, morador da região por anos, conseguiu imprimir, na história do bairro carioca e seu cotidiano de criminalidade, um texto ágil e lírico, sem estereótipos raciais e sociais, que transforma o romance em um clássico contemporâneo. Lins também se dedicou a escrever outra importante história da cidade, ao falar do nascimento do samba no bairro do Estácio, em seu livro Desde que o samba é samba, de 2012.  

O escritor Paulo Lins – imagem retirada do site Alchetron

Outra perspectiva contemporânea que faz da literatura um espaço de disputas políticas e legados históricos, no que diz respeito a uma narrativa sobre o Rio de Janeiro e sua história, são os livros da autora Eliana Alves Cruz. Dedicada a fazer da presença africana e da escravidão do século XIX o assunto central de sua obra, a autora apresenta um olhar inédito, na literatura sobre a cidade, em romances como Água de Barrela (romance que resgata a história de família da própria autora) e O crime do cais do Valongo.

O Cais do Valongo, na região conhecida como Pequena África, cenário do romance de Eliana Alves Cruz e atualmente um sítio arqueológico. Imagem em domínio público – Wikimedia Commons 

Deslocando o viés da violência para outro tipo de linguagem, em 2009, Marcus Faustini lançou seu Guia afetivo da periferia, narrativa que é um misto de autobiografia, guia urbano das ruas do Rio e romance de formação. Faustini narra de forma ágil a vida de um jovem carioca de Campo Grande, e sua relação lúdica e tensa com os espaços privilegiados da cidade.  

Anos depois, já em 2018, Geovani Martins se tornou um best-seller, com seu livro de contos O Sol na Cabeça. Nascido em Bangu e morador da comunidade do Vidigal quando escreveu o livro, Geovani descreve com perfeição, em narrativas como “Rolézim”, “A história do periquito e do macaco” e “Estação Padre Miguel”, o cotidiano dos jovens que vivem nas favelas cariocas e precisam lidar cotidianamente com o a violência do tráfico e das forças de segurança pública.

Geovani Martins em sua casa no Vidigal. Foto de Felipe Fittipaldi – imagem retirada de El País Brasil 

Geovani Martins é um dos autores que surgiram a partir das oficinas da Flup, a Festa Literária das Periferias, idealizada por Écio Sales e Júlio Ludemir. Desde 2012, a Flup acontece periodicamente no Rio de Janeiro e todo ano, um livro – de autoria do melhor dos alunos que participam das oficinas – é publicado. O processo vem alimentando o surgimento de diversos escritores e escritoras de diferentes áreas da cidade.  

Outro movimento literário que nasce das periferias e tem interface com os eventos e oficinas da Flup é a cena de poesia slam. Forma parecida com o rap – e com o repente brasileiro – o slam é um desafio de poetas feito de forma oral e em público. O movimento já ocorre no Rio de Janeiro desde que o antropólogo Paulo Emílio Azevedo fundou, em 2013, o Tagarela, ao lado de poetas como Slow da BF, Max Medeiros e Tom Grito.  

Em 2017, surgiu o Slam das Minas, iniciativa carioca de Tom Grito, com as poetas Genesis, Rainha do Verso, Moto Tai e Andrea Bak. Esses grupos ocupam majoritariamente as ruas e fazem da poesia urbana de populações discriminadas (negros, mulheres, trans etc.) uma força de criação literária e performance política.

Flup – edição de 2019. Imagem retirada do site Notícia Preta 

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