Choros, chorinhos e chorões

Flor amorosa, de Antônio Callado, interpretado por Altamiro Carrilho

O som de uma flauta transversal solando uma melodia, cavaquinhos com seus agudos repiques, o acompanhamento certeiro do violão de 7 cordas — com as baixarias nas cordas mais graves e os acordes pescados nas demais  e o pandeiro, na cadência e ataque precisos, dando a dinâmica que a música pedir. do violão. Já dá para saber que estamos perto de uma roda de choro. Nessa roda também entram outros instrumentos (de sopro, percussivos, de cordas…), mas o sentimento que em conjunto eles produzem é o que faz do choro — quiçá o primeiro estilo musical tipicamente brasileiro: o choro.

Roda de Choro, Ilustração de Seth (pseudônimo de Álvaro Marins).

Na virada do século XIX para o XX, o Rio era uma confusão de formas, gêneros e variações musicais. Polcas, serestas, valsas, habanas, tangos e maxixes se cruzavam na pulsante música popular urbana. Nesse fuzuê sonoro, o choro se desenvolveu como uma espécie de corruptela desses gêneros, amolecendo a rigidez dos chiques bailes da corte, para ganhar uma liberdade e quebradas rítmicas que apenas as ruas poderiam oferecer.

Até o século XIX a expressão “choro” não se referia a um gênero musical. Assim como “samba” e “batuque” já foram termos genéricos para designar uma festa musicada, “choro” era onde reinava o encontro entre a flauta e outros dois instrumentos – mal-afamados, à época -, o cavaquinho e o violão, que eram tocados de forma “chorosa”. Foi a partir daí que passaram a ser conhecidos os “grupos de choro”. Essa conformação musical foi montada pela primeira vez pelo flautista Joaquim Antônio da Silva Callado, considerado o “pai dos chorões”. Sua peça de 1880, Flor Amorosa, é considerada um marco inaugural do choro. Callado faleceu naquele mesmo ano, aos 31 anos. 

Antônio Callado, na capa da Revista Illustrada, nº202, em ocasião de seu falecimento, 1880. Fundação Biblioteca Nacional

Décadas depois, em 1936, o carteiro e músico amador Alexandre Gonçalves Pinto — conhecido como Animal — publicou O Choro: Reminiscências dos Chorões Antigos, o primeiro livro dedicado ao tema. O livro faz um compilado, com os nomes e os respectivos instrumentos de centenas de chorões, desde 1870 até o ano do lançamento. São dezenas e dezenas de verbetes rememorando os chorões cariocas. Também são lembradas as festas e choros da época:

“Vou aqui descrever as antigas festas obrigadas aos bons e afamados choros daquelle inesquecivel tempo, pois são para mim grande transmissor de saudades. Como eram as festas da casa do Machado Breguedim, na Estação do Rocha, Machadinho, como era conhecido era um flauta de nomeada, os choros organisados em sua residência eram fartos de excellentes iguarias e regados de bebidas finas; sendo um alto funccionario da Alfandega era financeiro, por isto fazia grandes economias para gastar em suas festas, onde reunias os músicos seus amigos. As festas em casa do Machadinho, se prolongavam por muitos dias sempre na maior harmonia de intimidade e enthusiasmo eram dignos de grande admiração os conjunctos dos chorões que se succediam uns a outros, querendo cada qual mostrar as suas composições e o valor de suas agilidades mecânicas e sopro aprimorado. E assim eram as festas da casa do inesquecivel Machado Breguedim

Chorinho, Cândido Portinari, 1942. Acervo Projeto Portinari

Essas memórias revelam o perfil social dos primeiros chorões — músicos da baixa classe média urbana, em geral funcionários públicos, carteiros, ferroviários ou integrantes de bandas militares. Eles transitavam entre os salões da elite e os quintais populares do Rio de Janeiro oitocentista, espaços marcados pela convivência entre o erudito e o popular. Como observa o pesquisador Lira Neto, esses músicos “tinham direito a entoar suas flautas, violões e cavaquinhos na sala de visitas, bem à vista de quem passasse pela rua, enquanto o terreiro ficava reservado aos atabaques e agogôs dos batuqueiros”, separados por um “biombo social” que refletia as hierarquias raciais e culturais da época.

Entre os muitos chorões citados por Gonçalves Pinto está Alfredo Vianna, talentoso flautista que dominava a leitura musical e possuía instrumentos de diferentes sistemas, sinalizando a modernização técnica do ofício. Seu legado, guardado em partituras e na memória dos músicos, seria continuado por seu filho — ninguém menos que Alfredo da Rocha Vianna Filho, o imortal Pixinguinha. Com ele, o choro, nascido nas flautas sentimentais de Callado e nos encontros da classe média carioca, encontraria seu ponto mais alto e definitivo na história da música brasileira.

Flauta transversa. Pixinguinha consolidou o choro como gênero musical brasileiro

O choro segue, geração após geração, a provocar um sentimento que só ele. A geração que viria depois de Pixinguinha, da qual o grande nome talvez seja o de Jacob do Bandolim, continuou a definir o choro como um dos gêneros mais queridos pelos cariocas — e, desde 2020, patrimônio imaterial do Brasil.

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