A Varíola no Rio
A presença da varíola1 no Rio Janeiro se confunde com a história da cidade. O primeiro registro da doença na Baía de Guanabara ocorreu durante a expedição francesa, no final de 1555, quando alguns colonos relataram um surto de casos que durou até 1562. Essa epidemia causou a morte de mais de 30 mil indígenas aldeados, o que reduziu drasticamente a população das vilas jesuítas próximas ao Rio de Janeiro.
Os missionários atribuíam a culpa da doença ao próprio doente, como um castigo divino pelos pecados cometidos. O livro Várias receitas, elaborado pelos jesuítas e publicado no século XVIII, recomendava que os doentes passassem excremento de cavalo fresco na pele, mistura de papoulas vermelhas, preparações feitas com partes do sistema digestivo de animais e recorressem a rezas e sangrias. Essas prescrições tinham uma dupla função: curar o enfermo e ao mesmo tempo castigá-lo pelos pecados cometidos, num processo de purificação.
Em 1641, a cidade viveu novo surto de varíola, resultado das inúmeras viagens à costa angolana – região conhecida como quilombo dos corvos, que desde o fim da década de 1620 tinha epidemias da doença. A varíola não era nenhuma novidade para os africanos, tanto que membros de diversas etnias que aportaram no Rio trouxeram divindades relacionadas à enfermidade, além de métodos de cura e tratamento próprios. Contudo, essa moléstia não era restrita à África. Os primeiros registros dela foram encontrados na Ásia por volta de seis mil anos atrás e já estava presente na Europa antes da chegada às Américas.
No século XVII, os mais acometidos pela doença eram os escravizados que, devido às más condições das viagens nos navios negreiros, chegavam infectados e morriam logo que desembarcavam no Rio. O aumento do número de contágios com o passar dos anos gerou a necessidade de mais espaço para enterrar os mortos. Em 1665, os franciscanos construíram um cemitério na parte sul do largo da Carioca, próximo ao porto, para sepultar escravizados falecidos. A alta taxa de mortalidade causada pela varíola entre a população escravizada deu origem a um estigma social e racista de que a doença era trazida pelos africanos. Entretanto, esses números eram maiores entre os escravizados por causa das más condições de vida e de trabalho a que eram submetidos.
A enfermidade atravessou os séculos XVIII e XIX. Entre 1834 e 1835, a varíola fez inúmeras vítimas na cidade. Em 1838, assolou os bairros da Prainha, Valongo, Saúde, Gamboa e Saco dos Alferes.
“E comecei eu também a indagar, a querer saber. Então, continuava? Como era? Como se morria de bexigas? As pessoas ficavam muito coradas, sentiam febre. Havia várias espécies. A pior é a que matava sem rebentar, matava dentro, dentro da gente, apodrecendo em horas!”
A peste”, João do Rio.
A primeira vacina chegaria no início dos anos 1800, importada da Inglaterra. No ano de 1811, foi criada a Junta da Instituição Vacínica no Rio de Janeiro, que implementou diversas ações para o controle da epidemia, dentre elas a promulgação, em 1832, da lei que tornava obrigatória a vacinação das crianças. Apesar dos esforços, a doença ainda fez várias vítimas, sendo responsável por um número substancial de mortes.
No início do século XX, em meio ao surto de febre amarela e peste bubônica, os casos de varíola aumentaram vertiginosamente2. Em janeiro de 1904, o diretor de saúde pública, Oswaldo Cruz, iniciou uma grande campanha de vacinação para a erradicação da doença, mas o clima estava tenso na capital da República. Desde o final da década de 1890, as autoridades do Rio de Janeiro vinham realizando intervenções urbanas que resultaram na destruição de vários sobrados e cortiços e expulsaram as classes populares da região central da cidade. Essas interferências aumentaram a hostilidade do povo e geraram certa resistência com relação à campanha de vacinação. Uma das questões era o procedimento utilizado na vacinação: as agulhas eram muito grossas, sendo necessário por vezes, no caso das mulheres e crianças, a injeção nas nádegas. No momento de aplicar o imunizante era preciso levantar as saias ou abaixar as calças, algo que revoltava os chefes de família que consideravam a ação um atentado ao pudor e uma afronta à moral.
No dia 31 de outubro de 1904, a câmara aprovou a obrigatoriedade da vacina e, nove dias depois, o jornal carioca A notícia publicou a regulamentação da lei, definindo que apenas os indivíduos que comprovassem estar vacinados teriam acesso a contratos de trabalho, matrículas em escolas, certidões de casamento, autorização de viagens, dentre outros documentos legais. A notícia fez com que eclodissem vários conflitos na cidade, que ficaram conhecidos como Revolta da Vacina. No dia 16 de novembro, foi proclamado estado de sítio e o cancelamento da vacinação obrigatória. Depois disso, a lei foi modificada e a vacina tornou-se opcional.
No início da década de 1920, os serviços de saúde passaram por uma reestruturação (Reforma Carlos Chagas) que resultou na criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) e acabou ganhando status de Ministério no governo de Getúlio Vargas. Esse departamento foi responsável pela criação de diversas campanhas sanitárias para conscientização da educação higiênica da população e para a vacinação antivariólica. Apesar das diversas campanhas promovidas pelo DNSP e pelo Ministério da Educação e Saúde Pública, o Brasil terminou a década de 1950 como o único país americano que ainda tinha registros de casos locais.
Ao longo dos anos de 1960, a luta contra a varíola ganhou destaque global. Órgãos internacionais iniciaram campanhas para erradicação da doença. Em 1962, foi criada aqui a Campanha Nacional Contra a Varíola (CNCV), cujo plano de vacinação em massa envolveu órgãos estaduais e o Ministério da Saúde. Em meio à instabilidade política que marcou o governo de João Goulart, a implantação do plano não alcançou grande sucesso. Em 1966, a partir de novos acordos internacionais, o governo brasileiro assumiu a erradicação da varíola como meta e substituiu a CNCV pela CEV – Campanha de Erradicação da Varíola.
Entre as medidas tomadas pelas autoridades estava a exigência da carteira de vacinação, tanto no âmbito nacional como para viagens a outros países. A campanha contava com duas frentes: a vacinação e a propaganda para conscientização. Os educadores sanitários visitavam as casas distribuindo cartilhas e folhetos, as rádios locais divulgavam a importância da vacina e os órgãos responsáveis realizavam a vacinação em massa. Uma legislação foi promulgada para garantir a vacinação e revacinação, que obrigava a apresentação do certificado para retirada de qualquer documento público, para receber salários, para matrícula nas escolas e viagens ao exterior. Dessa vez, não houve nenhuma resistência da população, até porque essas restrições não afetavam grande parte da população, que não tinha documentos oficiais nem pretendia realizar viagens internacionais.
Os últimos 19 casos da doença aconteceram no Rio de Janeiro, na Vila Cruzeiro, bairro da Penha, em abril de 1971. Apesar da doença ter sido erradicada, a vacinação antivariólica continuou obrigatória até 1975.
A experiência do combate e controle epidemiológico da varíola deixou um importante legado, pois possibilitou um conhecimento mais aprofundado das estratégias de combate para outras doenças que são usadas até hoje nas políticas dos órgãos de saúde pública.
Este texto foi elaborado pelo pesquisador Marlon Marcelo do Projeto República (UFMG).
1- Essa enfermidade se caracteriza por uma infecção viral transmitida através do contato com secreções, gotículas de salivas, pele e superfícies contaminadas. O infectado apresenta dores no corpo, febre e erupções de bolhas e pústulas na pele.
2- No conto “A peste”, publicado em 1910 na coletânea Dentro da noite, o cronista João do Rio descreveu o caos sanitário causado pela epidemia.