Mal do século: a tuberculose e seus efeitos no Rio de Janeiro

“Boca de lobo” – Criolo – Compositores: Criolo; Nave; Daniel Ganjaman

A tuberculose é uma velha conhecida dos cariocas. Em 1772, já eram relatados casos de “tísica”, como também era chamada uma das variantes da Mycobacterium tuberculosis. Naquela época, a doença era combatida com infusões e xaropes feitos a partir de plantas medicinais como agrião, jatobá e cipó-chumbo. A “peste branca” foi trazida pelos europeus para a América Portuguesa ainda durante a colonização do continente. Desde então, dispensários, sanatórios, irmandades religiosas, postos de higiene e profilaxia, centros de saúde, redes ambulatoriais e hospitalares, instituições filantrópicas e, mais recentemente, o Sistema Único de Saúde (SUS) foram fundamentais para o combate da doença na cidade.

Material da exposição “Imagens da Peste Branca”. Grupo de Enfermeiras Visitadoras da Inspetoria. Acervo: Casa de Oswaldo Cruz – COC

Um capítulo decisivo nessa história de inovações científicas e conquistas médicas foi a Reforma Carlos Chagas, em 1920, que, entre outras ações, criou o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Esse órgão foi responsável por uma maior capacitação do atendimento preventivo dos pacientes através de campanhas de educação, combate aos agentes infecciosos e meios de transmissão, fiscalização e intervenção nas áreas de risco, assistência domiciliar e atendimento ao público. Todos esses esforços foram realizados por equipes de médicos sanitaristas, inspetores de saúde e enfermeiras visitadoras. Outro passo importante foi dado em 1927, com a criação da Liga Brasileira Contra a Tuberculose – atual Fundação Ataulpho de Paiva – responsável pela fabricação da vacina Bacilo de Calmette e Guérin (BCG) no Rio de Janeiro. 

Video Institucional. Dir.: Ricardo van Steen, 2008. Youtube, canal da Fundação Ataulpho de Paiva

Ao longo dos séculos, a tuberculose se manifestou de diferentes formas e variados níveis de contágio. Entre 1840 e 1950, a enfermidade era considerada uma ameaça constante à saúde dos moradores de morros, favelas e subúrbios da então capital federal. Era uma doença crônica, o agravamento dos sintomas era lento e estava diretamente ligada à precariedade das condições de vida dos pacientes. 

“Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos
A vida inteira que podia ter sido e que não foi
Tosse, tosse, tosse
Mandou chamar o médico:
Diga trinta e três
Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
Respire
–  O senhor tem uma escavação no pulmão
esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
–  Então, doutor, não é possível tentar o
pneumotórax?
Não. A única coisa a fazer é tocar um tango
argentino.


Pneumotórax, Manuel Bandeira

Todos estavam sujeitos ao contágio: desde o escravizado, que mal podia descansar no chão das senzalas após um dia de trabalhos forçados; passando pelo operário, que batalhava na fábrica para pagar o aluguel do quarto nos cortiços insalubres do centro até o boêmio inveterado, que passava as madrugadas nas rodas de maxixe, chorinho e samba na Cidade Nova. Apesar da aura de romantismo que cercava a doença – a imagem de um ‘tuberculoso’ estava associada à ideia de sensibilidade às artes, ao amor, ao refinamento dos sentimentos – na hora da morte não havia distinção, matava poetas, escritores e operários da mesma maneira. 

Visitadoras sanitárias da inspetoria de profilaxia da tuberculose atendendo paciente. Acervo: Fundação Oswaldo Cruz, 1920

De tempos em tempos, ocorria o aumento vertiginoso dos casos, fazendo a doença ganhar aspectos de epidemia, flagelo, calamidade e a tuberculose passou a fazer parte do imaginário urbano do Rio de Janeiro. Por isso, foi amplamente debatida pela população a partir de manchetes de jornais, capas de revistas, canções populares, poemas, charges, romances, filmes e novelas. Não faltaram histórias reais e fatos que marcaram o cotidiano carioca, fortalecendo a memória coletiva em torno da doença e sua proximidade indesejada com a cidade. 

Cartaz da exposição “Imagens da Peste Branca”. Capa do almanaque da Liga Brasileira contra a tuberculose, 1929. Acervo: Fundação Oswaldo Cruz.

A morte de Sinhô, conhecido como o “Rei do Samba”, é um desses tristes fatos. Em 1930, já com a saúde bastante debilitada pela doença e a carreira musical em crise, o compositor contava com a solidariedade dos amigos que lhe ajudavam com as despesas diárias. No dia 4 de agosto, Sinhô atravessava de barca da Ilha do Governador, onde morava, até o cais Pharoux, na Praça XV, levando no bolso um novo samba, quando teve uma crise respiratória violenta. Os demais tripulantes da embarcação ainda tentaram ajudá-lo. Contudo, ele não resistiu à expectoração de sangue dos pulmões. No dia seguinte, o samba amanheceu de luto. 

Outra vítima da doença foi Noel Rosa, considerado o “bacharel da Vila”, em matéria de samba e malandragem. Por volta de 1935, ele andava afastado do burburinho da noite carioca: corria a notícia de que o “filósofo do samba” estava adoentado e passava uma temporada em Belo Horizonte, cidade famosa pelos ares propícios ao tratamento da tuberculose. Mas ficou pouco tempo por lá porque sentiu-se impelido a voltar para tentar resgatar o amor de Cecy, uma dançarina de cabaré da Lapa. Sem os devidos cuidados médicos, a doença se agravaria nos meses seguintes. Sua última composição foi um samba triste, em forma de despedida, dedicada à musa: “Último Desejo”. Noel Rosa não teve tempo de ouvir a gravação lançada postumamente. Ele faleceu no dia 4 de maio de 1937, aos 26 anos. 

Apesar do tratamento ser bastante eficaz, atualmente, a doença ainda é responsável por um grande número de mortes. Os índices ainda assustam tanto quanto na virada dos séculos XIX e XX, principalmente em um contexto em que grande parte da população enfrenta condições de vulnerabilidade social, econômica e sanitária, principal fator para sua proliferação. No cenário contemporâneo, a população carcerária é a mais atingida, devido à falta de vigilância epidemiológica adequada nos presídios. Os dados atuais da doença no Rio de Janeiro continuam alarmantes.

 Em 2020, a taxa de mortalidade nacional chegou a 2,2 por 100 mil habitantes. No Rio, esse número é maior que o dobro. Segundo o relatório da Frente Parlamentar de Combate à tuberculose da Câmara Municipal, na cidade são registrados 102 casos para cada 100 mil moradores. A falta de investimento em políticas públicas na área da saúde é uma das causas dessa situação. Bangu possui o maior número de registros da capital: 723 casos para cada 100 mil pessoas. Em junho de 2020, eram 355 casos. A Rocinha e o Complexo do Alemão, entre outras comunidades, também possuem taxas alarmantes. 

“Em brigas não tomo parte,
A morros não subo não:
Que se nunca tive enfarte,
Só tenho meio pulmão.
No amor ainda tomo parte,
Mas não me esbaldo, isso não:
Que se nunca tive enfarte,
Só tenho meio pulmão.
De Eros a arriscada arte
Sempre usei com discrição
Que se nunca tive enfarte,
Só tenho meio pulmão.
Bem que desejara amar-te
Sem medida nem razão.
Mas qual! Se não tive enfarte,
Só tenho meio pulmão.”


Temas e voltas, Manuel Bandeira

Este texto foi elaborado pelo pesquisador Bruno Viveiros Martins do Projeto República (UFMG)

“Ao meu amigo Edgard” – João Bosco – Compositores: Noel Rosa e João Bosco -1978

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