João Soares Lisboa – morte em 30 de setembro de 1824
A Independência do Brasil resultou em uma monarquia centralizada, com um sistema unitário de poder, concentrado na figura do soberano e na Corte sediada no Rio de Janeiro. Porém, outros projetos foram imaginados. E o comerciante português João Soares Lisboa pensou um Brasil diferente daquele que se fazia naquele momento.
Totalmente identificado com a “causa brasiliense” nos anos 1820, João Soares Lisboa veio da região do Minho ao Brasil em 1800, com aproximadamente 14 anos. Teve como primeiro destino a cidade de Porto Alegre. Lá se desenvolveu como “vivandeiro” — ou seja, fornecia víveres — das tropas portuguesas que lutavam no sul, num conflito que resultou na anexação da província da Cisplatina (atual Uruguai).
João Soares teve êxito em sua carreira. Em 1818, consolidou seus negócios e conseguiu inserir-se na malha mercantil ligada à da Corte do Rio de Janeiro. Mas na disputa por cargos na institucionalidade da monarquia, Lisboa — assim como demais comerciantes de origem semelhante, espécie de autodidatas nas leituras sobre a prática mercantil — rivalizava com outros agentes de famílias tradicionais, abastadas, que também partilhavam sua formação na Universidade de Coimbra, em Portugal.
Desde a transferência da Corte em 1808 — em particular após a elevação do Brasil à condição de Reino Unido, junto com Portugal e Algarves, em 1815 —, ser comerciante no Rio de Janeiro tinha um significado que ia além de maiores possibilidades de negócios e ganhos. Havia uma rede de sociabilidade que associava as relações mercantis a um debate de ideias, de origem iluminista, em que o comércio seria uma atividade responsável por promover a civilização e a “felicidade geral da nação”. Por suposto, seriam seus agentes os protagonistas desse processo. Nesse sentido, a inserção de profissionais liberais na construção de um imaginário político para o Brasil era não apenas uma possibilidade, mas uma necessidade. E João Soares Lisboa decidiu entrar nessa arena.
Naquele período, não havia, no Rio de Janeiro, melhor forma de divulgar um conjunto de ideias do que o meio impresso, mais especificamente, produzir um jornal de caráter menos informativo e mais panfletário — isso, claro, se o portador dessas reflexões possuísse condições de fazê-lo. Assim nasceu o Correio do Rio de Janeiro.
O jornal seguia um padrão da época: tinha quatro páginas, preenchidas de maneira alternada com um extenso comentário sobre fatos políticos ocorridos no Rio de Janeiro, ou uma resposta a alguma crítica sofrida por outro jornal; a reprodução de edições de periódicos portugueses cuja linha editorial fosse afim; e uma sessão de cartas de leitores — as quais, a despeito dos textos enviados por pessoas reais, eram muitas vezes produzidas pelos punhos dos próprios redatores dos jornais. Eles costumavam criar leitores fictícios, utilizando pseudônimos como “Hum Constitucional de facto, e direito”, “o Inimigo dos Tyranos”, ou “O Honrado Brasileiro”.
João Soares Lisboa fez do Correio do Rio de Janeiro um dos jornais mais populares da cidade. E dos mais audaciosos. Seu primeiro número veio a público em meio à efervescência pela qual passava a cidade nos meses que antecederam a Independência, em abril de 1822. O comerciante-redator decidiu elaborar e promover um projeto de país que combinasse o regime monárquico e princípios republicanos — apesar do termo “república” e suas conjugações serem evitados nos discursos. Bem comum, participação e soberania popular, a percepção de que todos nascem iguais, um jusnaturalismo latente… esses são apenas alguns traços de como ele imaginava o Brasil sob o reinado de D. Pedro I. Seu modelo “monárquico-democrático”, vale dizer, era imaginado por Soares Lisboa, mas também compartilhado por um nicho de liberais, negociantes como ele.
A imagem de radical criada em torno de João Soares Lisboa tinha origens em seus textos — por vezes, um tanto atrevidos — publicados no Correio do Rio de Janeiro. Em junho de 1822, D. Pedro convocou eleições para eleger a deputação responsável pela redação de uma constituinte brasileira. A escolha dos deputados, porém, não se daria através do voto direto da população. Com isso, D. Pedro contrariava uma representação, endereçada ao príncipe regente, escrita por um grupo chamado posteriormente de “brasílico”, que incluía Joaquim Gonçalves Ledo, padre Januário da Costa, além do próprio Soares Lisboa.
O Correio convocavau a população fluminense a ratificar a representação, e cerca de seis mil deixaram suas assinaturas em apoio à proposta. Diante da negativa do príncipe, o redator do Correio não se conteve: “Ah! Senhor, que fizestes? […] Quem autorizou V.A.R. [Vossa Alteza Real] para mandar o contrário daquilo que lhe Representaram os Povos desta Província?”.
Apesar dessa e outras eventuais críticas a D. Pedro I, os verdadeiros inimigos do comerciante português eram os “déspotas” e “tyranos”. “Está inteiramente rasgado o véo do Misterio! Assim o pedia a honra de todos os Portuguezes do Brasil, a sua Liberdade, a sua futura grandeza, a Gloria do Seu Primeiro Cidadão do Seu primeiro Imperador, do Primeiro dos Principes, do Immortal Pedro!!!” – escreveu em uma edição extraordinária do Correio do Rio de Janeiro — justamente a primeira após a notícia do grito do Ipiranga ter chegado ao Rio. Soares Lisboa também desejava que o soberano partilhasse de seus princípios: “eis um puro democrata”, escreveu, em referência ao imperador, que possuía traços marcadamente autoritários.
Em julho de 1823, José Bonifácio foi demitido de seu ministério por D. Pedro I. A partir daí, o ex-ministro passou a tecer críticas ferrenhas ao círculo mais próximo do imperador em o seu jornal, O Tamoyo. Numa solução inusitada para contrabalancear a situação, o imperador autorizou que José Soares Lisboa redigisse novamente o Correio do Rio de Janeiro diretamente da sua cela — para ser impresso depois na Typographia de Torres, localizada adequadamente na rua da cadeia. Pedro I sabia que João Soares Lisboa lançaria munição pesada contra José Bonifácio — e é de se especular que tenha incentivado a fazê-lo. Em contrapartida, o Correio continuaria comentando fatos políticos e divulgado cartas de leitores que mais soavam como editoriais do jornal.
João Soares continuou a publicar seu periódico até o dia 24 de novembro de 1823. Foi novamente proibido, dessa vez, como parte de um movimento autoritário de Pedro I, que, esgotado com os constituintes, mandou tropas fecharem a Assembleia. João Soares Lisboa acabou sendo incorporado entre os nomes “subversivos”, recebendo como sentença novamente o exílio — dessa vez para fora do continente —, em 1824.
O negociante, porém, não chegou a deixar o Brasil. A embarcação que o levaria para a França atracou primeiro em Pernambuco. Um plano para sua fuga já havia sido articulado com figuras como Frei Caneca. Soares Lisboa aportou em Recife em plena Confederação do Equador. Viveu aquela experiência republicana com intensidade: lutou por ela e por ela deu sua vida. João Soares Lisboa morreu em combate, em 1824.
Referências Bibliográficas
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Pesquisador: Davi Aroeira Kacowicz