“Devo não nego, pago quando puder”: promessas e a mercancia com o santo

Artesão trabalhando em uma fábrica de santos, junho de 1972. Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã. 

Somos um povo dado aos sentimentos e historias que entremeiam milagre, promessa e salvação. Essa trinca tem grande impacto na nossa formação política, estética e no nosso imaginário. Sendo uma sociedade em que a catequese cumpre função elementar no processo colonial, esses três aspectos estão lançados em relação com diferentes formas de interpretar, praticar e inventar o mundo. Em um lugar como a cidade do Rio de Janeiro se tece na vida comum várias formas de intimidade, confiança e negociação com aquilo que se entende como sagrado. Essas várias formas de fazer armam a roda para nela beber junto o sagrado e o profano, santos e meros mortais que riscam versos que cruzam o ordinário e extraordinário.

Altar na entrada do Beco do Rato, Rio de Janeiro. Imagem extraída de TripAdvisor

No botequim que é a cidade do Rio de Janeiro os milagres são cada vez mais comuns, são destronados do céu para acontecer na miudeza do cotidiano da aldeia, se dão como algo corriqueiro. Se o milagre é cotidiano e é termo da sobrevivência comum, assim como os feitiços, a salvação, algo que parece cada vez mais difícil, precisa ser abreviada e nada melhor para encurtar a distância do que a camaradagem.  Nesse sentido, nada mais oportuno para fazer amizade com o santo do que uma boa promessa. Em uma cidade como o Rio, o que percebemos nos mais diferentes modos de experimentar e tecer relação com os mistérios, espanto e insondável é chamar no papo e negociar.

Fiéis subindo a escadaria da igreja da Penha. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã.

A promessa não é somente aquilo que o sujeito se presta a pedir, combinar ou propor em uma situação difícil, muitas vezes tomado pelo desespero e em aposta de fé. Em outros termos, mais embebidos no caldo cultural dessa cidade e tramado no sotaque da rua, a promessa é uma chamada ao desenrolo. Como narram as máximas próprias desse modo de negociação: “Quem me deve, me paga” … “Devo, não nego. Pago quando puder” … 

Nesse jogo performado entre intimidade, confiança, aposta e resultado pobre daquele que não cumpra com o combinado, seja você o pedinte ou mesmo o próprio santo. A promessa se lança na caça das possibilidades, seus limites e joga o tempo todo com as expectativas dos envolvidos. Um bom bebedor ou faz promessa para ficar um tempo sem beber ou toma um belo porre com o santo. Existem aquelas pessoas que fazem promessas mais tímidas e existe quem pague promessa até mesmo fazendo carnaval. 

Doce, samba, festa, tambor, cachaça, roupa, romaria e canção. Toada, prece, ladainha, brinquedo, vela, balaio, canjira e missão. Guaraná, santinho, ex-voto, retrato, cabelo, bloco, bandeira e procissão. Fogueira, afilhado, reza, penitência, jejum, romaria, esmola e balão. No repertório infinito dos modos de fazer amizade com os santos a promessa continua valendo quase como um trato de compadre que é mais do que irmão.

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