As pestilências coloniais nos povos indígenas
As grandes navegações incrementaram o trânsito de doenças numa espécie de unificação microbiana do mundo. Antes do século XVI, bócio, desinterias e tipos brandos de malária eram enfermidades mais frequentes entre os indígenas da Guanabara. Com a chegada dos brancos, vieram também tuberculose, lepra, doenças venéreas e as “bexigas” – males que deixavam marcas na pele dos infectados. Uma delas, a varicela, causou tamanho impacto entre os indígenas a ponto de ser reconhecida até hoje por seu nome na língua nativa: catapora (“fogo que salta”, em tupi).
Nem os conhecimentos tradicionais, nem as defesas imunológicas dos indígenas deram conta dos vírus desconhecidos. O fato de prevalecer um único tipo sanguíneo entre os nativos (O+) colaborou para sua alta mortandade. As “febres pestilenciais”, como eram genericamente chamadas, desestruturaram a organização social das tabas. Assim como na maior parte da colônia, além de afetar a estrutura produtiva da aldeia, a maioria dos líderes (morubixabas) da Guanabara, como o temido Kunhambeba, não escaparam dessa onda devastadora.
A doença era vista pelos nativos como uma expressão de força do deus caraíba. Essa impressão, de certa maneira, favoreceu o processo de catequização – o temor como instrumento de convencimento. Em outros, porém, essa percepção ocasionou uma ira ainda maior dos indígenas contra os brancos, em especial os padres. A suspeita sobre os missionários não estava de todo errada. Havia o fato de eles mesmos serem portadores de infecções inoculadas – em especial a tuberculose.
Surtos epidêmicos foram provocados tanto de maneira involuntária quanto pela ação direta dos europeus. Em 1555, antes da fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a missão colonizadora vinda da França, liderada por Nicolas Villegagnon, trouxe consigo uma epidemia que hoje se acredita ter sido de varíola, cujo resultado foi a morte de alguns franceses e milhares de Tupinambás – aliados de primeira hora dos gauleses contra os portugueses. Os lusitanos, por sua vez, também disseminaram doenças entre os seus colaboradores nativos, os Temiminós – habitantes da atual Ilha do Governador. Em outra ocasião, segundo relatos de navegadores ingleses da época, a rápida parada de um navio espanhol nos portos no Rio de Janeiro, em 1599, foi o suficiente para provocar uma epidemia não identificada que matou três mil pessoas na virada do século XVII.
Nem sempre as epidemias ocorreram entre os nativos por infortúnio. Antônio Salema, governador da repartição do Sul – a divisão administrativa do Brasil Colônia sediada no Rio de Janeiro – decidiu exterminar os viventes das atuais Ipanema, Lagoa e Leblon para lá erguer seu engenho de cana. Promoveu um ataque viral, deixando roupas e objetos infestados de varíola ao relento. Os indígenas pegaram esse material, levaram para a taba e a aldeia padeceu doente. Devido à sua eficácia – e a despeito da falta de provas concretas –, é de se imaginar que essa tática tenha sido praticada contra os nativos ao longo de todo o período colonial.
Este texto foi elaborado pelo pesquisador Davi Aroeira Kacowicz do Projeto República (UFMG).