As pestilências coloniais nos povos indígenas

MC Carol – “Não Foi Cabral”. Música lançada em 2021

As grandes navegações incrementaram o trânsito de doenças numa espécie de unificação microbiana do mundo. Antes do século XVI, bócio, desinterias e tipos brandos de malária eram enfermidades mais frequentes entre os indígenas da Guanabara. Com a chegada dos brancos, vieram também tuberculose, lepra, doenças venéreas e as “bexigas” – males que deixavam marcas na pele dos infectados. Uma delas, a varicela, causou tamanho impacto entre os indígenas a ponto de ser reconhecida até hoje por seu nome na língua nativa: catapora (“fogo que salta”, em tupi). 

 

Gravura de Theodore de Bry, 1597 – Coleção Brasiliana Itaú

Nem os conhecimentos tradicionais, nem as defesas imunológicas dos indígenas deram conta dos vírus desconhecidos. O fato de prevalecer um único tipo sanguíneo entre os nativos (O+) colaborou para sua alta mortandade. As “febres pestilenciais”, como eram genericamente chamadas, desestruturaram a organização social das tabas. Assim como na maior parte da colônia, além de afetar a estrutura produtiva da aldeia, a maioria dos líderes (morubixabas) da Guanabara, como o temido Kunhambeba, não escaparam dessa onda devastadora. 

Johann Moritz Rugendas, 1802-1858. Viagem pitoresca através do Brasil. Fundação Biblioteca Nacional

A doença era vista pelos nativos como uma expressão de força do deus caraíba. Essa impressão, de certa maneira, favoreceu o processo de catequização – o temor como instrumento de convencimento. Em outros, porém, essa percepção ocasionou uma ira ainda maior dos indígenas contra os brancos, em especial os padres. A suspeita sobre os missionários não estava de todo errada. Havia o fato de eles mesmos serem portadores de infecções inoculadas – em especial a tuberculose. 

Surtos epidêmicos foram provocados tanto de maneira involuntária quanto pela ação direta dos europeus. Em 1555, antes da fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a missão colonizadora vinda da França, liderada por Nicolas Villegagnon, trouxe consigo uma epidemia que hoje se acredita ter sido de varíola, cujo resultado foi a morte de alguns franceses e milhares de Tupinambás – aliados de primeira hora dos gauleses contra os portugueses. Os lusitanos, por sua vez, também disseminaram doenças entre os seus colaboradores nativos, os Temiminós – habitantes da atual Ilha do Governador. Em outra ocasião, segundo relatos de navegadores ingleses da época, a rápida parada de um navio espanhol nos portos no Rio de Janeiro, em 1599, foi o suficiente para provocar uma epidemia não identificada que matou três mil pessoas na virada do século XVII. 

Johann Moritz Rugendas, 1802-1858. Viagem pitoresca através do Brasil. Fundação Biblioteca Nacional

Nem sempre as epidemias ocorreram entre os nativos por infortúnio. Antônio Salema, governador da repartição do Sul – a divisão administrativa do Brasil Colônia sediada no Rio de Janeiro – decidiu exterminar os viventes das atuais Ipanema, Lagoa e Leblon para lá erguer seu engenho de cana. Promoveu um ataque viral, deixando roupas e objetos infestados de varíola ao relento. Os indígenas pegaram esse material, levaram para a taba e a aldeia padeceu doente. Devido à sua eficácia – e a despeito da falta de provas concretas –, é de se imaginar que essa tática tenha sido praticada contra os nativos ao longo de todo o período colonial. 

Este texto foi elaborado pelo pesquisador Davi Aroeira Kacowicz do Projeto República (UFMG).

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