Bandeira e Drummond – dois poetas em uma cidade adotada
Do vasto universo de poetas de todo país que cantaram, em algum verso, aspectos da cidade adotada para viverem, dois deles se destacam pela forma como se misturaram com o imaginário de seus habitantes. O pernambucano Manuel Bandeira e o mineiro Carlos Drummond de Andrade foram observadores incansáveis das ruas e de seus tipos, das transformações urbanas e dos espaços populares. Além das crônicas sobre o Rio, que impactaram seu tempo, a relação de amor e crise aparece em seus poemas famosos.
Manuel Bandeira veio ainda na infância para o Rio de Janeiro e morou sempre na zona central da cidade: Lapa, Santa Teresa (na rua do Curvelo, já em 1920) e Castelo foram alguns dos endereços do poeta, que entraram em seus versos.
Percorrendo sua obra, podemos ver a quase queda de um balão na movimentada e literária rua do Sabão – que ficava nos arredores da atual avenida Presidente Vargas -, mergulhar na zona do Mangue, testemunhar o afogamento de João Gostoso na lagoa Rodrigo de Freitas, passear pela restinga da Marambaia, ver o beco na paisagem reluzente da Glória, frequentar terreiros no morro do Encantado e ouvir as cigarras de Laranjeiras.
Na “cidade nascida / no morro Cara de Cão”, narrada no poema “Rio de Janeiro”, uma das louvações publicadas na Estrela da Manhã em 1960, Bandeira passeava sua pena de olho no outro lado do mar – em um crime em Parada de Lucas, ou no delírio do Desmemoriado de Vigário Geral.
É o poeta que faz versos como quem faz críticas ao poder público em poemas como “Prece”, em que lamentava a derrubada de antigas igrejas do centro para a abertura da avenida Presidente Vargas, e recomenda aos céus “mais um seculuzinho de Purgatório” para o então interventor do Distrito Federal, Henrique Dodsworth – ou “o prefeito Henriquinho” como está no poema. Ou também em “Carta-Poema”, um pedido para que o prefeito Hildebrando de Góis cuidasse do lixo a céu aberto na região do seu apartamento, próximo à avenida Beira-Mar, em “Petição ao Prefeito”, com a renovação do pedido de limpeza “no interior do quarteirão / Formado pelas avenidas / Antônio Carlos, Beira-Mar, / Wilson e Calógeras”.
O mineiro Carlos Drummond de Andrade teve, inicialmente, uma relação de admiração e distância com a cidade. Morador de Copacabana desde os anos de 1930, com o passar do tempo se tornou um completo habitante da cidade das praias, fazendo da sua mineral Itabira e da provinciana Belo Horizonte, apenas memórias em versos.
O que assistia da janela de seu apartamento na rua Conselheiro Lafayete era o cotidiano das estações e dos corpos, as transformações urbanas e a passagem dos dias. Não à toa, está sentado em um banco à beira-mar, onde o poeta mineiro ficou eternizado como uma das estátuas mais famosas do Rio.
Nesta cidade do Rio de Janeiro,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Poema “A Bruxa”, de 1942
Desde seu primeiro livro, Alguma Poesia, de 1930, Drummond já falava da então capital do país, em que os nus das praias se confundiam com assassinatos e adultérios, na cidade de um povo que “quer me passar a perna”. Em “Coração numeroso”, temos a “promessa de mar” em um calor de um vento abafado que “vinha de Minas”, adentramos a Galeria Cruzeiro e testemunhamos a transmutação do poeta na própria cidade.
A partir desses primeiros poemas, a vida no Rio de Janeiro se infiltrou de muitas formas nos livros de Drummond. São morros em fome e festa (“Morro da Babilônia” e “Favelário Nacional”) ao lado de paisagens naturais, sensuais e melancólicas – como nos poemas “Os Inocentes do Leblon”, na “Vida passada a limpo” – ao ver a “Esplêndida lua, debruçada / sobre Joaquim Nabuco, 81” – ou no “Canto do Rio em Sol”, com o “Rio das quatro lagoas / de quatro túneis irmãos”.
Drummond ainda fez anotações urbanas, como a “Indecisão do Méier” entre seus dois cinemas, o Cosme Velho de Machado de Assis em “A um bruxo, com amor”, a demolição sentida do Hotel Avenida, ou os “garotos da rua Noel Rosa” e a “namorada do tenente em Aldeia Campista”, do poema “Cidade”.
De alguma forma, toda vez que Drummond falava do mar, da praia, da tarde, do sol, da janela, ele estava escrevendo a partir da experiência carioca que o transformou em um dos principais poetas a traduzir em versos o Rio de Janeiro, ao longo de mais de cinco décadas.