Campo de Santana
Nos mapas com vista aérea do Rio de Janeiro, produzidos no século XIX, entre as demais ruas, quadras, edifícios e acidentes geográficos da cidade demarcados no papel, o Campo de Santana dificilmente não será notado. O que hoje é a atual praça da República — com seus caminhos traçados e paisagismos planejados — já foi um enorme descampado lamacento, praticamente inabitado e escanteado da cidade. Mas a partir do século XIX, foi palco de marcos políticos decisivos para a história do Rio — e do Brasil.
O nome da região vem da Igreja de Santana, construída em 1735 — e demolida em meados do século XIX —, localizada onde hoje está o edifício da Central do Brasil. Por muitos anos, a movimentação da região se restringia aos devotos da santa de mesmo nome, além de proprietários de animais, que levavam seus bichos para pastar no local. Mas tudo mudou após a vinda da família real — junto com milhares de funcionários públicos, nobres e demais reinóis que cruzaram o oceano atrás da corte.
Assim como outros pontos do Rio de Janeiro, o Campo de Santana mudou drasticamente de feição a partir da década de 1810. Uma benfeitoria nada trivial foi a construção de um enorme chafariz, com 22 bicas, abastecido pelas águas do rio Maracanã. O local chegou a ser apelidado de “campo das lavadeiras”. O movimento em torno das águas era intenso não só pela lavação de roupa, mas pelos “aguadeiros”, que transportavam a água em grandes barris amarrados a carroças, vendendo o líquido de casa em casa e pelas ruas da cidade.
A área do campo era aberta, seguindo uma tradição portuguesa. Manter um grande descampado espaçoso dentro da cidade era ideal para celebrações suntuosas, promovidas pela Coroa. O casamento entre d. Pedro e d. Leopoldina, em 1817, e as festas em celebração de d. João VI como rei de Portugal, Brasil e Algarves, no ano seguinte, ofereceram à população do Rio de Janeiro espetáculos grandiosos, jamais vistos na cidade. O local recebeu torres iluminadas, uma arena para realização de touradas e um novo palacete real — com direito a jardim e passeio. A ampla sacada, defronte para a praça em toda sua extensão, era apropriada para que o monarca acenasse para a população em festa no nível abaixo.
O espaço do Campo de Santana era próprio para práticas e exercícios militares. A instalação de um quartel no espaço fez de lá uma área movimentada pelo vai e vem da soldadesca. Não foi por acaso, que povo e tropa se concentraram para defender d. Pedro I de um motim, ocorrido logo no início do ano da Independência
No dia 09 de janeiro de 1822, d. Pedro anunciou à população que escolheu desobedecer a um decreto, assinado pelo rei, ordenando que deixasse a regência do Brasil e regressasse a Portugal. Uma parte expressiva da população celebrou a notícia; mas nem todos. Dois dias depois do episódio que ficou para a história como “o Fico”, o general Jorge de Avilez — comandante de tropas fiéis a Lisboa — deu início a um motim, buscando forçar a partida do herdeiro do trono à Europa. Mas fracassou. Isso porque, além do fato de outras divisões militares terem se mantido ao lado do monarca, uma massa de populares se reuniu aos milhares no Campo de Santana, em defesa de d. Pedro. Muitos foram até o quartel da praça se armar — com permissão dos chefes militares e tudo mais. Enquanto a tensão não desvanecia — o que ocorreu no dia seguinte, com a rendição de Avilez —, o povo montou guarda, espalhado pelo espaço aberto.
Alguns meses depois, em outubro, o local recebeu aquela que pode ser considerada como a principal celebração pública (e simbólica) da Independência do Brasil: a aclamação do imperador, d. Pedro I. O episódio serviu para ratificar o apoio da população da capital ao ato de emancipação política, decretada em setembro. No dia da celebração, 12 de outubro — numa coincidência “arranjada”, já que também era o dia do aniversário de d. Pedro —, uma chuva pareceu que estragaria a festa. Só pareceu.
Milhares de pessoas saudaram o novo soberano do Brasil, que do alto da sacada do palacete — construído justamente para seu casamento, poucos anos antes —, acenava para a população. As representações do episódio produzidas pelos artistas da época — que, como de praxe, exageraram na quantidade de pessoas presentes no evento —, mostram d. Pedro ao lado de uma bandeira com as cores do império, verde e amarela. A festança correu o dia, com cavalhadas, música, dança e gritos de “viva!”. Tamanha foi a importância do evento para a cidade do Rio, que aquele espaço passou a ser chamado oficialmente de “Campo da Aclamação”. Ainda assim, mesmo hoje, a atual praça da República atende pelo nome de Campo de Santana.
Referências Bibliográficas
ENDERS, Armelle. A história do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gryphus Editora, 2015.
MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles (Orgs.). Monarquia, liberalismo e negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013.
PEDREIRA, Jorge Miguel Viana; COSTA, Fernando Dores. D. João VI: um príncipe entre dois continentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SHULTZ, Kristen. Versalhes tropical: Império, monarquia e a Corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
STARLING, Heloisa Maria Murgel; DE LIMA, Marcela Telles (orgs.). Vozes do Brasil: a linguagem política na Independência (1820-1824). Brasília: Edições do Senado Federal, 2021.
Este texto foi elaborado pelo pesquisador Davi Aroeira Kacowicz.