O cais do Valongo
Angola, Congo, Benguela,
Monjolo, Cabinda, Mina,
Quiloa, Rebolo
Aqui onde estão os homens
Há um grande leilão
(Zumbi, canção de Jorge Benjor)
No século XVIII se intensificam as conexões atlânticas da cidade, com a exploração do ouro nas Minas Gerais e regiões próximas, e o consequente aumento do tráfico atlântico de africanos escravizados. Diferentes grupos europeus no Atlântico dedicam-se a esta atividade que, mais tarde, no século XIX, será chamada de infame comércio. Em várias cidades litorâneas da África Atlântica se estabelecem contatos comerciais com o Rio de Janeiro, e o oceano estendido alcança Moçambique, na África Oriental. O Rio é transformado em capital da colônia, e cada vez mais aportam embarcações trazendo pessoas africanas escravizadas, e produtos, e outras gentes de muitas partes.
A chegada dos africanos e africanas trazidos à força da sua terra de origem na terrível travessia produzia cenas difíceis de se ver, mesmo numa sociedade que convivia com a legalidade da escravidão. Desembarcavam adoecidos, com medo, mal vestidos e carregando toda a dor da viagem em seus corpos e rostos. O comércio de gente era muitas vezes realizado na Rua Direita e arredores, muito próximo ao cais do Chafariz do Mestre Valentim, e à sede do governo colonial. Essas cenas começaram a criar desconforto na elite local, que passou a reclamar e a solicitar que o desembarque de cativos fosse transferido daquela área nobre da cidade.
O Vice-Rei, Marquês do Lavradio, atendeu a essas reivindicações e transferiu obrigatoriamente todo o desembarque de africanos para a enseada do Valongo, indicando também a mudança do mercado de escravizados e do cemitério de pretos novos – destino final dos cativos recém chegados que não resistiram às doenças e sofrimento -, bem como do lazareto, espécie de hospital de tratamento dos que chegavam enfermos. Foi montado no Valongo todo um complexo escravagista, e este aparato urbano criou raízes na região, se estendendo além do tempo de funcionamento do Cais do Valongo, que vai de fins do século XVIII até 1831. O cais como local de desembarque de centenas de milhares de africanos escravizados trazidos diretamente do seu continente de origem tem a duração de pouco mais de quatro décadas, porém, suas conexões com outros portos atlânticos brasileiros no tráfico interprovincial, o mercado de escravizados e as lojas dedicadas ao comércio de artefatos de tortura, seguem por ali.
Quando constroem sobre ele o Cais da Imperatriz, para receber a Princesa das Duas Sicílias que veio se casar com o Imperador Pedro II, em 1843, cobrem o Cais do Valongo, alteram o nome dos logradouros que o cercam, mas não conseguem silenciar de todo sua memória, e sua história. A presença africana ali seguiu, resistente, criadora, viva, pulsante, e atlântica, neste caso alimentada pela eventual chegada clandestina daqueles trazidos pelo tráfico ilegal ou por migrações internas. Formaram-se quilombos urbanos naquela área no final do século XIX e na primeira metade do século XX, como o Quilombo da Pedra do Sal. E, na região do entorno do cais e parte do centro do Rio, reuniões de músicos e artistas negros, nos batuques, rodas de samba e casas religiosas de matrizes africanas, fizeram com que fosse nomeada como uma “África em miniatura”, por Heitor dos Prazeres, na década de 1920.
Em 1976, Djalma Sabiá, um verdadeiro griô da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, escreveu uma letra de samba trazendo o Cais do Valongo histórico, e se referiu ao desembarque de gente identificada por ele como especialmente trazida de Angola e do Congo. Em 1996, o achamento do Cemitério dos Pretos Novos fez lembrar as dores da morte provocadas pela escravidão atlântica.
Desde 2017, o Cais do Valongo é reconhecido pela UNESCO como patrimônio mundial, caracterizado como um sítio histórico de caráter sensível.