Oswaldo Cruz: entre a ciência e a política
Foi justo num momento de aguda crise epidêmica que o Rio de Janeiro viu surgir uma das figuras mais notáveis do pensamento científico brasileiro. Oswaldo Gonçalves Cruz, paulista de São Luiz do Paraitinga, estava ainda na casa dos trinta anos quando foi convidado pelo então presidente da República, Rodrigues Alves, para assumir a chefia da Diretoria Geral de Saúde Pública – embrião do atual Ministério da Saúde –, em 1903. O cargo tinha lá seu prestígio, mas a tarefa era árdua. Tratava-se de imaginar meios para colocar um ponto final num problema crônico da cidade: as epidemias que assolavam a população carioca a cada novo ciclo das estações. Essa era uma promessa de campanha que caiu no colo do médico num momento em que o Rio amargava, de uma só vez, três epidemias – peste bubônica, febre amarela e varíola.
Àquela altura, Oswaldo Cruz não era nenhum iniciante. Profissional desde os vinte anos, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, havia sido o primeiro brasileiro a estudar no Instituto Pasteur de Paris – onde, em 1899, se especializou em bacteriologia. Além do mais, sua experiência na saúde pública também não era novidade. Em 1894, Cruz integrou a comissão do Instituto Sanitário Federal, responsável por lançar as diretrizes da campanha contra a epidemia de cólera no Vale do Paraíba. Cinco anos depois, ao lado de Vital Brazil e Adolfo Lutz, foi indicado para investigar o surto de peste bubônica no porto de Santos. Já em 1900, assumiu a direção técnica do Instituto Soroterápico Federal, um dos primeiros produtores nacionais das chamadas “vacinas antipestosas” e popularmente conhecido como Instituto de Manguinhos – o mesmo que, no futuro, se tornaria a Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz). Para quem andava planejando um choque modernizador na capital da República, o currículo do sanitarista parecia mais que ideal, pois reunia formação sólida, experiência reconhecida e bons contatos.
É verdade que o processo de modernização e higienização do Rio estava atravessado de contradições. Era, a um só tempo, preventivo e autoritário, público e excludente. Foi assim com os chamados “bota-abaixo” promovidos pelo projeto urbanístico do prefeito Pereira Passos ou com as visitas forçadas das campanhas sanitárias. De origem pobre, a maior parte da população carioca simplesmente teve de se adaptar aos “ares civilizatórios” impostos pelos governantes. Os mesmos que, ao soprarem, deixavam um rastro de destruição e indignação sobre cortiços e barracos de madeira.
De qualquer forma, nos primeiros meses como diretor geral de Saúde Pública, Oswaldo Cruz obteve sucesso no controle de transmissão das seculares epidemias de febre amarela e peste bubônica no Rio de Janeiro. Amparado por pesquisa de ponta, o médico resolveu atacar o mal pela raiz: era preciso eliminar os vetores das doenças. Se a desinfecção ostensiva das “brigadas mata-mosquito” andava gerando certo mal-estar, no caso da peste bubônica, a heterodoxa medida profilática de comprar os ratos até que contou com uma significativa adesão popular. O que não agradou mesmo foi a proposta de vacinação em massa contra a varíola, em 1904 – medida que, apesar da turbulência da Revolta da Vacina, acabou gerando efeitos positivos no combate à moléstia. A partir de então, Oswaldo Cruz se tornou uma das figuras públicas mais conhecidas e retratadas pela imprensa.
Mas o plano do sanitarista não se restringia aos domínios da capital. Ele queria levar aquelas ações às demais regiões do Brasil. À frente do Instituto Soroterápico – que deixou de ser “Federal” para se tornar “de Patologia Experimental de Manguinhos” –, atravessou o país, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, em duas expedições que duraram 111 dias de viagem, entre 1905 e 1906. Era a primeira vez que uma turma de cientistas se propunha a conhecer de perto as mazelas sanitárias do Brasil profundo – e, claro, a colher material para o desenvolvimento de pesquisas que procurassem mitigar esses males.
Enquanto isso, o centro de pesquisas que se inspirava no Instituto Pasteur já era reconhecido internacionalmente como o maior da América Latina dedicado ao estudo de doenças tropicais. Em 1908, o Instituto passou a ser oficialmente conhecido como Instituto Oswaldo Cruz. Nessa mesma época, já haviam começado as construções da nova sede: um portentoso castelo em arquitetura neo-mourisca, cravado numa mata da Zona Norte do Rio. Ou, como disse Afrânio Peixoto, um “palácio encantado, como a fantasia dos califas nunca realizou no Oriente”.
Oswaldo Cruz continuou suas atividades como guia do Instituto até sua morte, em 1917. Neste meio-tempo, tomou posse na Academia Brasileira de Letras e foi nomeado prefeito de Petrópolis. Mas nenhum dos títulos parecem estar à altura de sua maior realização: mudar a maneira de se fazer ciência no Brasil e formar novas gerações envolvidas com o uso do conhecimento científico em benefício do bem comum. Seu legado permanece vivo nos mais de 120 anos de atuação da Fiocruz. Uma das instituições de desenvolvimento científico-tecnológico em saúde mais respeitadas em todo o mundo, que conta com unidades em diferentes estados brasileiros e uma em Moçambique. Um valoroso patrimônio nacional “em favor da vida”.
Este texto foi elaborado pelo pesquisador Danilo Marques do Projeto República (UFMG).