Onde o Nordeste pulsa no Rio: A Feira que uniu destinos
Aluna: Thatiane Lopes de Souza
O meu trabalho para o projeto Rio Memórias tem como tema a Feira de Tradições Nordestinas, localizada no bairro de São Cristóvão, um dos espaços culturais mais significativos do Rio de Janeiro, e também um lugar profundamente ligado à minha história pessoal.
Embora eu não tenha nascido em São Cristóvão, hoje moro no bairro, que faz parte da minha memória familiar. Foi na Feira que os meus pais se conheceram em 1984, e por isso, ela representa para mim um elo entre as origens nordestinas da minha família e a cidade onde cresci.
A história da Feira começou ainda na década de 1940, quando caminhões conhecidos como paus de arara traziam ao Rio de Janeiro milhares de nordestinos em busca de melhores oportunidades de trabalho. Ao chegarem ao Campo de São Cristóvão, ponto final da maioria desses caminhões, eles se reuniam para trocar e vender produtos de suas regiões de origem. Aos domingos, o local se enchia de barracas e se transformava em um espaço de celebração cultural, com forró, sanfona e zabumba. Com o passar do tempo, aquele encontro improvisado de migrantes cresceu e se firmou no entorno do Pavilhão de São Cristóvão. Em 2003, a Feira foi oficialmente institucionalizada no pavilhão e recebeu o nome do “Rei do Baião”, Luiz Gonzaga. Desde então, consolidou-se como patrimônio cultural e imaterial carioca, um espaço de convivência, gastronomia, música e identidade.
Quando ouço minha mãe, Vera Lúcia, hoje com 69 anos e funcionária pública, falar sobre a Feira, sinto que o tempo ali não passa, ele apenas muda de forma. Ela me conta que, aos 28 anos, quando conheceu meu pai, “a feira era no meio da rua, com muitas barracas de comidas, bebidas e forró ao ar livre”. Pernambucana recém-chegada ao Rio, ela sempre amou dançar, e para ela, “a feira era um lugar maravilhoso, onde podíamos reunir os amigos, dançar e nos divertir nos fins de semana”. Uma de suas lembranças mais marcantes são as competições de lambada, em que os sanfoneiros separavam os casais para dançarem e premiavam os vencedores com dinheiro ou uma caixa de cerveja. “Não era uma disputa, era prazeroso”, ela diz. Hoje, ao relembrar, sente saudade, mas também gratidão por tudo o que viveu “tempos simples e felizes, que permanecem vivos dentro de mim”.
As lembranças de Vera Lúcia revelam uma geração que viveu a Feira em sua essência mais espontânea, ao som da sanfona e sob o céu aberto, quando os encontros eram muito celebrados.
Já Carlinhos, meu amigo pessoal e ex-taxista aposentado, é um frequentador fiel há mais de doze anos. Ele costuma ir à Feira todos os domingos para almoçar, encontrar amigos, dançar e “espantar a tristeza que existe dentro da gente”. Diz ele que gosta de sentar na Barraca do Aconchego, onde bebe sua cervejinha, conversa, canta e às vezes até chora com as músicas que tocam. Para ele, a Feira é um espaço democrático, “onde todo mundo é bem-vindo, quem quer dançar dança, quem quer só namorar, namora”. Ele também recorda as melhorias que presenciou ao longo dos anos: “Antes, o banheiro era péssimo; hoje está ótimo. Agora tem detector de metais na entrada principal, segurança e muita opção de lojas, barzinhos e restaurantes com comida boa.” Mas, acima de tudo, o que faz voltar é o sentimento de pertencimento. “Eu volto por causa das amizades. Lá ninguém fica sozinho”, afirma com orgulho.
Outro depoimento vem de Alexandre, taxista há 44 anos e motorista de aplicativo, de 65 anos, natural do Acre. Frequentador assíduo, ele chega na Feira todos os domingos à tarde e só vai embora à noite. Sua fala é cheia de entusiasmo e afeto: “Eu chego lá por volta das quatro e fico até dez horas, só dançando.” Ele cita com alegria as barracas que fazem parte do seu roteiro: a Barraca do Amor Dois, onde toca um trio de forró pé-de-serra, a antiga Barraca Só Lua, a Fortaleza, a Barraca do Mário e o Bar do Aconchego. Ele descreve a Feira como um lugar “bom demais, onde se dança muito xote e seresta”. Em sua voz, percebe-se que a Feira não é apenas um ponto de lazer, é um território afetivo, onde a dança se torna uma forma de celebração e a música é quase uma prece.
Esses depoimentos mostram que a Feira é mais do que um ponto turístico que pulsa entre o passado e o presente. As histórias pessoais se entrelaçam com a história coletiva do bairro de São Cristóvão, criando uma rede de memórias que sustentam a identidade nordestina na cidade do Rio. A música, o forró pé-de-serra, o canto nos karaokês, o choro, os encontros, desencontros, reencontros compõem um mosaico de sons que ecoam o Nordeste dentro da capital fluminense.
Ao observar o que mudou e o que permaneceu, vejo que a Feira de São Cristóvão é, ao mesmo tempo, um patrimônio histórico e emocional. É um lugar onde o turismo encontra a autenticidade cultural, onde o visitante se torna parte de uma história viva. Não é apenas um espaço para consumir, mas para pertencer, um território de acolhimento que abriga memórias, sotaques e afetos.
Compreendo que a Feira é como um espelho da própria vida: feita de encontros, despedidas, saudade, música e resistência. Falar dela é revisitar minha origem, o amor dos meus pais, as vozes que ecoam nas barracas e o som das sanfonas que nunca cessam. A Feira de São Cristóvão é o lugar onde o Nordeste pulsa no Rio e onde sigo, de corpo e alma, me reconectando com as minhas raízes
