O Núcleo Bernardelli

Na eclosão dos modernismos da década de 1920, o ímpeto vanguardista que alimentou seus primeiros momentos foi intimamente ligado a uma série de biografias cujas possibilidades financeiras permitiam o contato in loco com as novidades da arte europeia. Na década seguinte, o capital cultural das aristocracias cafeeiras passou a dar lugar a outra visão do que era uma modernidade com cara de Brasil. Em vez de sair do país e dialogar, vis a vis, com as novidades do momento, uma geração de jovens pintores aparecem ligados aos temas urbanos de um país em expansão, com conflitos e conquistas em sua dimensão política e social. 

O Núcleo Bernardelli reunido. Identificados, da esquerda para a direita: (1) José Pancetti, (2) Rescala, (3) Manoel Santiago, (4) Bruno Lechowski, (5) Milton Dacosta e (6) Bustamante Sá – Imagens do livro: Núcleo Bernardelli – Arte Brasileira nos anos 30 e 40

No Rio de Janeiro, a guinada desse período em direção a uma arte simultaneamente sofisticada e popular teve nos artistas do Núcleo Bernardelli sua expressão mais potente. Batizado com o sobrenome de dois artistas cuja contribuição para as artes cariocas já vinham de décadas anteriores – os irmãos Rodolfo e Henrique Bernardelli – o Núcleo foi fundado em 12 de junho de 1931 e atravessou as duas décadas seguintes. A dupla de irmãos recebeu tal homenagem pela sua relação de trabalho e dissidência com as práticas acadêmicas da antiga Academia Imperial de Belas Artes. Ambos, aliás, já tinham feito uma experiência similar de liderarem um movimento independente de pintores, ainda no final do século XIX. Liderados pela iniciativa pioneira do pintor Edson Motta, o Núcleo contou com diversos nomes de artistas, muitos anônimos e populares, outros com grande destaque futuro como Milton Dacosta, Manoel Santiago, Bustamante Sá, João José Rescala, Quirino Campofiorito, José Pacentti, Yoshia Takaoka, Bruno Lechowski e Joaquim Tenreiro.

Bustamante Sá, “Paisagem de Santa Teresa”, s/d. Acervo Câmara dos Deputados 

O Núcleo Bernardelli, portanto, era um grupo ativo de jovens pintores, em sua maioria de classe média baixa, imigrantes ou pessoas sem recursos, que criaram um coletivo com vistas a, simultaneamente, introduzir preceitos modernos no ensino e ajudar novos pintores a entrarem nos Salões da Escola Nacional de Belas Artes, ainda fechada para as transformações daquele período. No mesmo ano em que Lúcio Costa e sua pequena revolução na diretoria da mesma instituição é bruscamente interrompida (ele havia assumido a presidência em 1930 e demitido no ano seguinte) e que Rodolfo Bernardelli falece, o Núcleo nasce em conversas regadas a cerveja nos cafés da cidade – como o Café Assyrio e o Café Chic – e se instala incialmente no Studio fotográfico de Nicolas Alagernovitz, na rua Alcindo Guanabara. Logo depois, obtém – como benesse do Ministro da Educação e Saúde, Belisário Penna – uma sala no porão do prédio do Escola Nacional de Belas Artes. Até 1941, ano em que o Núcleo se desfaz, ainda passariam por espaços na rua São José e na Praça Tiradentes.  

O grupo foi decisivo na transformação dos cursos de arte, trabalhando de forma inovadora com modelos vivos, promovendo cursos noturnos (o que permitia aos trabalhadores poderem frequentá-los), aulas livres pela cidade com visitas aos subúrbios do Rio de Janeiro e Niterói, espaços que se tornaram temas de suas telas. A intenção do Núcleo era profissionalizar amadores, fornecendo técnicas e visibilidade. Promoveram cinco Salões entre 1932 e 1941, dando ao Rio de Janeiro seu primeiro coletivo moderno de artistas cuja meta, mais do que prêmios e viagens, era viabilizar a pintura como profissão. 

Milton Dacosta, “Paisagem de Santa Teresa”, 1937 – Enciclopédia Itaú Cultural

Em 1935, porém, o Núcleo sofreu um duro golpe ao ser invadido por um grupo fascista ligado à Ação Integralista Brasileira. O presidente da ENBA, Archimedes Memória, insufla alunos da Escola ligados à tradição acadêmica, a invadirem e depredarem a sala do Núcleo, cujas obras que lá estavam foram em boa parte destruídas. A reação dos “nucleanos” (como eram chamados) impediu algo pior, porém a história ficou marcada na memória daquele período. Com a invasão, apoiada por críticos de teor fascistas em jornais (o período era o auge internacional dos movimentos totalitários na Europa), o Núcleo acaba sendo despejado de seu endereço na Rua México e passou a vagar por diferentes endereços, sem recursos e com seu paulatino término até 1941. 

José Pancetti, “Barcos e Pescadores”, 1933 – Fonte: site História das Artes

De qualquer maneira, a ação do Núcleo Bernardelli é uma das principais atividades coletivas da arte carioca em todos os tempos, dialogando ou inspirando outros movimentos similares no país, como o grupo Santa Helena em São Paulo. Como conquista concreta de seus esforços políticos, foram responsáveis por conseguirem a criação da Divisão Moderna do Salão Nacional, disputa que atravessou décadas até finalmente obter um Salão dedicado exclusivamente à Arte Moderna. O êxito dos esforços profissionais de alguns nomes do Núcleo, viagens internacionais e as mudanças no campo da arte encerraram naturalmente a atividade do coletivo.

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