Impressões cosmopolitas sobre o Rio
No período republicano, o Brasil seguia como um país que pessoas de todo o mundo olhavam com atenção. E isso ocorria por diferentes motivos, já que passavam por aqui desde escritores de literatura até antropólogos, ensaístas e filósofos. Ainda visto como espaço exótico nos trópicos, porém cada vez mais integrados nos movimentos geopolíticos e econômicos do mundo, o Rio de Janeiro era um destino comum para os que vinham conhecer as principais cidades das Américas.
Nesse período, o Rio de Janeiro ocupou, de forma até mesmo insuspeita, o imaginário de nomes como James Joyce – que incluiu o nome da cidade em palavras-valise como “Rijanviera” e “Rivera in januero”, em seu livro derradeiro Finnegans Wake (1937) apesar de nunca ter pisado no Brasil. O mais comum, porém, foram os visitantes que, seguindo a tradição, anotavam em passagens e estadias mais longas suas impressões sobre o cotidiano carioca.
Alguns escritores e escritoras, por ofício ou viagem a passeio, chegaram a morar na cidade de forma mais demorada, como o escritor austríaco de best-sellers Stefan Zweig, a poeta norte-americana Elisabeth Bishop ou o romancista e cronista argentino Roberto Arlt. O argentino escreveu uma série de crônicas sobre a cidade entre os meses de abril e maio de 1930, inicialmente, elogiando o que via para logo depois criticar fortemente seu provincianismo e seu clima excessivamente tropical. Dos que passaram pela cidade e descreveram suas diferentes versões, temos os versos politizados de Píer Paolo Pasolini, a “cidade organismo” descrita em 1961 pelo semiólogo suíço Max Bense ou o diário seco de Albert Camus.
O contexto da cidade já não era mais tão bucólico como aquele retratado pelos visitantes dos séculos XVIII ou XIX. O Rio de Janeiro se tornava aos poucos uma cidade vertical e com evidente concentração de renda e recursos urbanísticos. As favelas surgiam na paisagem como elemento constituinte de uma realidade à parte dentro do cenário cosmopolita que a cidade vivia no século XX. Tal transformação não passou desapercebida aos olhos de autores de outros países e, assim como a escravidão e seus horrores era destacada nos séculos anteriores, eles também marcavam, de diferentes formas, as péssimas condições de vida de parte da população.
A última frase de Brasil, obra de Stefan Zweig, é direta sobre o Rio de Janeiro: “Não há cidade mais encantadora na terra”. O livro, de 1941, escrito como um ensaio durante a primeira vinda do escritor austríaco ao país (na terceira e última, ele se suicidaria em Petrópolis, em 1942), se tornou um discurso oficial de nacionalismo pátrio no período de Getúlio Vargas. Seu viés ufanista não agradou à crítica local, mas isso não o impediu de ser um sucesso de vendas. O Brasil – e o Rio de Janeiro em particular – que Zweig descrevia manteve a cidade em uma narrativa do paraíso puro e exótico – mesmo em um país atravessando um regime ditatorial. Ele dedicou um capítulo a enaltecer o Rio em um estilo próximo aos textos clássicos. Iniciou o livro com os famosos adjetivos sobre a baía de Guanabara e a vista até o porto da cidade. Nesse espírito de pleno alumbramento, adentrou os demais espaços da “natureza que virou cidade” e da “cidade que dá impressão de natureza”.
Mas Zweig ampliou o leque de visões sobre o Rio que os antigos viajantes não podiam ter: tudo é mais lindo visto de cima, de um avião que sobrevoa os morros e mares. De certa forma, o escritor registrou uma cidade que seria a tônica de muitos cronistas que surgiriam nesse período. O seu Rio era uma cidade bucólica, espaço para flanar, com clima aprazível entre a aldeia e a megalópole, com pouca população, custo de vida baixo e maior proximidade de classes – a ponto de o autor afirmar que “é mais fácil ser pobre aqui do que em outra grande cidade”. Ao falar das favelas, por exemplo, incorporou a ideia de pitoresco, ao relativizar a pobreza de seus moradores, vendo-as de forma positiva na paisagem urbana. A ironia dessa passagem é que Zweig acreditava (e lamentava!) que elas poderiam desaparecer com o progresso da cidade.
Zweig foi um visitante que quis ficar no país e destacou detalhes positivos dessa vida carioca – é curiosa a parte em que falava sobre o verão de quatro meses em uma época que “todos usam trajes de linho, a cidade inteira anda de branco, e a partir de novembro, o Rio torna-se uma praia balneária”.
Já outro europeu que veio ao Brasil pouco depois do escritor austríaco não teve a mesma atitude. O argelino Albert Camus chegou à noite à cidade e tudo que viu foram contornos e as luzes da cidade. Em seu estilo seco, melancólico e direto, descreveu o nascer do sol visto do navio com o Rio ao fundo e a rapidez em que se mudavam as cores até a paisagem se tornar um “cartão postal”. Ao contrário de Zweig e de muitos outros, para Camus, o breve momento de deslumbre era sintetizado na frase cortante “a natureza tem horror dos milagres longos demais”.
E é com esse espírito que o escritor argelino observava o dia a dia da então capital da república. Por ser famoso na época, participou (sempre a contragosto) de jantares, recepções e encontros com autoridades que o torturavam. Camus é agudo ao observar as favelas – que, ao contrário do imaginado por Zweig, só cresciam. Para Camus, “nunca o luxo e a miséria me pareceram tão insolentemente mesclados”. Criticou a velocidade dos motoristas, narrou uma expedição a um terreiro de umbanda em Caxias (uma macumba, segundo o escritor) ao lado de Abdias do Nascimento – que também o levou a um samba no subúrbio.
Esse lado mais taciturno e menos solar do Rio foi também material de poetas que tiveram relações bem distintas com a cidade. A norte-americana Elisabeth Bishop viveu por vinte anos no Rio de Janeiro, entre 1951 e 1971. Ao lado de sua companheira, a arquiteta Lota Macedo Soares, Bishop teve uma relação difícil com o Brasil em geral e com o Rio em particular. Morando quase todo o tempo em Petrópolis, dedicou poucos poemas à cidade. Um deles, talvez o mais famoso, é “Cadela Rosada”. O tema, indigesto para a época, cruzava o abandono de um cão de rua com as notícias de assassinatos de mendigos no rio da Guarda, em Itaguaí. Em um “Rio que sua”, a poeta pergunta à cadela do título:
“Você não sabia? Deu no jornal:
pra resolver o problema social,
estão jogando os mendigos num canal.
E não são só pedintes os lançados
no rio da Guarda: idiotas, aleijados,
vagabundos, alcoólatras, drogados”.
No mesmo ano em que Bishop deixou o país que viveu por tanto tempo, outro poeta, dessa vez Italiano, conheceu o Rio de passagem, voltando de um festival de cinema em Mar del Plata. Pier Paolo Pasolini passou apenas algumas noites nas ruas cariocas e escreveu um poema duro e reflexivo, intitulado “Hierarquia”. De tom simultaneamente político e erótico, Pasolini descreveu sua subida a uma favela ao lado de um rapaz que conhecera na praia de Copacabana. Seu interesse sexual foi aos poucos sendo substituído por uma tomada de consciência, quando descobriu que o rapaz se intitulava “subversivo”. O Rio de Janeiro de Pasolini era escuro, pobre, sem traços de natureza ou mar. Em um dos trechos do poema, sintetizou tal ponto de vista, quando “se olha por dentro o Rio, num aspecto de eternidade”:
“A noite de chuva que não traz frescor
E molha as ruas miseráveis e os destroços
E as últimas cornijas art noveau dos portugueses pobres
Milagres sublime!”
Zweig, Camus, Bishop ou Pasolini são apenas alguns dos exemplos que temos de escritores estrangeiros, de diferentes partes do mundo, que se sentiram movidos pela cidade carioca em suas inspirações e visões ácidas sobre um espaço radicalmente distinto de seus países de origem. Ao contrário dos viajantes dos séculos passados, já escreviam em uma época em que cariocas tinham sua própria mitologia criada pelos autores locais – principalmente, seus cronistas, em jornais e revistas. Mesmo assim, escreveram obras e poemas que ampliaram nossa capacidade de ver a cidade e seus habitantes.