As guerras e os guerreiros Kariókas
Os rios da Guanabara – nossa “baía semelhante ao mar”, de acordo com André Thevet e Nicolas Barré – eram habitados por diversas comunidades tupinambás. Entre outras subsistências, esses guerreiros se aproveitavam da desova dos peixes nos rios, que propiciava fartura regular de alimento. Os tupinambás sabiam conservar a carne dos peixes sem sal. O pescado era bem cozido no moquém, depois triturado para transformar-se em um tipo de farinha, que, armazenada em cestos bem vedados, podia ser consumida por meses. Nos meses de junho e julho, em mais de 200 canoas, moradores do Rio de Janeiro se juntavam para capturar os peixes que iam desovar nos rios dessa região. Esse fenômeno, chamado de “piraíque” (subida dos peixes), era muito aguardado pelos mais destemidos, que buscavam a admiração de seu povo, além de honrar os antepassados. Eram criados para isso e estimulados pelos “payés” a cumprirem seus destinos.
Apenas eram aceitos como verdadeiros guerreiros aqueles que provavam seu valor em combate contra inimigos ancestrais, viviam sedentos de vingança por querelas passadas entre as gerações familiares. Com a farinha de peixe preparada, finalmente conseguiam as provisões necessárias e o morubixaba “Karió-pear” – que era o maioral da “rota carijó”, “aquele que vai aos carijós” – podia então reunir seus guerreiros e viajar com uma dezena de velozes canoas, que partiam com mais de 25 homens a bordo. Demoravam de quatro a cinco dias para chegar a Cananeia, no atual litoral de São Paulo, terra dos carijós.
Ali esperavam sorrateiramente próximos dos inimigos até o anoitecer e avançavam pela madrugada. Quase na alvorada, soavam as trombetas do ataque, disparavam flechas incendiárias sobre as casas inimigas e, aos urros, entravam pelo pátio da aldeia inimiga. Os guerreiros liderados pelo maioral da Karióka faziam uso das ibirapemas, em busca de adversários. Os que ousassem batalhar teriam seus crânios devidamente esmagados para não alcançarem a terra dos antepassados. Os inimigos pegos de surpresa tratavam de fugir, mas alguns sobreviventes, sobretudo as mulheres, eram poupados e levados de volta à Karióka, presos por uma corda trançada, que chamavam de muçurana.
Da mesma forma que chegavam, partiam, evitando ficar vulneráveis aos contra-ataques dos ofendidos. Em poucos minutos, desapareciam no horizonte. Dias depois, a frota de canoas retornava triunfante à Guanabara, ressoando as trombetas. Todos corriam à praia para receber os guerreiros. Assim que as canoas escorregavam pela areia, os reféns eram exibidos para amigos e familiares em festa. Atiravam punhados de areia e pequenas pedras nos carijós capturados, enquanto estes eram obrigados a dizer: “Eu, sua comida, cheguei!”.
Em êxtase, a enorme população da Karióka celebrava a vitória da expedição. Em pouco tempo, começava um verdadeiro carnaval. Eram esperados cinco dias de festa, com toda a parentada convidada na aldeia. Os celebrantes se reuniam para as festividades com seus melhores trajes de gala, havia comida e bebida em fartura.
Depois de muita dança, música e encenações previamente preparadas, todos aguardavam o grande momento. Na hora mais esperada, a multidão se reunia e um jovem guerreiro vestia o manto escarlate sagrado. Ele teria que provar seu valor à frente de todos e, assim, vingar a morte de seus avós com o sacrifício dos inimigos capturados. Como uma águia, ele se aproximava da vítima e recitava os versos de vingança. Bastava um golpe para o inimigo ser abatido e cair de bruços no chão. Nesse momento, a profecia da vingança ancestral se realizava.