Hélio Oiticica na Mangueira
Nascido no Rio de Janeiro em 1937, Hélio Oiticica era ainda um jovem artista quando dois dos principais movimentos de vanguarda da década de 1950 ocorreram. No Grupo Frente, de 1954, Hélio tinha apenas 17 anos e ainda era um dos mais novos alunos dos cursos de Ivan Serpa no MAM. Já no Grupo Neoconreto, em 1959, Oiticica já tinha ultrapassado os 20 anos e iniciava na cidade uma trajetória que marcaria definitivamente o cenário mundial das artes visuais. Se no início dos anos de 1960 sua obra amadurece com trabalhos como os Relevos Espaciais, os Penetráveis e os Bólides, foi em 1964 que um encontro com a geografia carioca mudou para sempre sua vida.
Morador do Jardim Botânico, Oiticica trabalhava com o pai, José Oiticica Filho, cientista entomólogo, no Museu Nacional. Suas idas frequentes à Quinta da Boa Vista, São Cristóvão, já criava em sua vida uma vizinhança com o Morro da Mangueira. No carnaval de 1964, Hélio Oiticica vê pela primeira vez em um barracão de Escola de Samba sua montagem para o carnaval. Amílcar de Castro, artista plástico que atuou com ele nos tempos do movimento neoconcreto, fazia na época o trabalho pioneiro de criar as alegorias da Estação Primeira de Mangueira. Jackson Ribeiro, auxiliar de Amílcar, chama Hélio para ver o trabalho.
Para Hélio Oiticica, as alegorias e o universo do carnaval são o princípio do fim de uma vida reflexiva, de um estado de calmaria e certezas no mundo burguês do Rio de Janeiro. A partir dos ensaios na antiga Fábrica da Companhia de Cerâmica Brasileira, o artista sofisticado cai de cabeça no mundo da favela e do samba. Desconhecido pela ampla maioria dos moradores do morro, Oiticica ganha o apelido de “russo” e se torna passista profissional, compondo com amigos o “trio do embalo maluco”.
Apesar de sempre ter tido uma relação franca com o universo popular da cultura brasileira – futebol, samba, Rádio Nacional, Emilinha e Marlene etc. – frequentar favelas era uma prática que estava fora do universo de referências sociais de Oiticica e demais intelectuais de sua geração. Nesse período, a relação da classe média carioca com a cultura e o dia-a-dia das populações dos morros e favelas da cidade trazia alguns matizes bem demarcados entre utopias revolucionárias, preconceitos de classe e assistencialismos por parte do Estado. Simultaneamente, a virada dos anos de 1950 para 1960 é um momento de transição para a representação dos morros cariocas dentre os habitantes da cidade e seus governantes. Tornando-se cada vez mais complexas, a vida nos morros passava a abrigar outras possibilidades de representação que não apenas a de “celeiro da tradição”, o “berço de criminosos” ou local bucólico habitado por uma população humilde e resignada.
A arte de Hélio Oiticica, nessa época, dá uma guinada definitiva em direção ao questionamento radical da relação obra/espectador e seus desdobramentos – criação/apropriação, autoria/consumo etc. Os Parangolés, obras criadas a partir do contato direto com a Escola de Samba e sua dança, traziam em seu primeiro movimento a fusão entre o coletivo e o individual. Eram estandartes e capas em que o uso lúdico do corpo de quem performa a obra faz dela bem coletivo, deslocando-a da autoria de um só para a parceria com qualquer um.
Oiticica e a Mangueira formaram, assim como os parceiros que vestiam seus Parangolés, um “indivíduo-coletivo”, contradição em termos que diz muito do estado de transe que o artista viveu nesse período. Ao se desmanchar na vida cotidiana da escola de samba, da bandidagem, das biroscas do Buraco Quente, Oiticica reformula sua ideia de coletivo e individual, torna-se estrangeiro para se aproximar do estranho ao renegar o familiar para se familiarizar com o outro. Em uma cidade social e racialmente dividida como o Rio, esse passo foi, até hoje, polêmico e revolucionário.