Catedrais do samba

Inventadas no Rio de Janeiro na década de 1920, as escolas de samba tiveram, sobretudo a partir da década de 1960, um papel de vanguarda pedagógica no Brasil: apresentar personagens, temas, episódios, à margem da História Oficial, aquela baseada em relatos aparentemente neutros de grandes feitos, efemérides e heróis do panteão.

As mesmas escolas de samba que nas décadas de 1940 e 1950 se limitavam a falar dos galardões, medalhas e brasões da pátria, assumiram um papel pioneiro a partir de certo momento. Um papel que os colégios não desempenhavam, os meios de comunicação ignoravam e os livros didáticos raramente enfrentavam.

Desfile dos Unidos de Santo Cristo, Rio de Janeiro, tendo como temática a história da Guerra dos Guararapes, no carnaval de 1953. Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã.

Quando o Salgueiro de Fernando Pamplona apresentou, inspirado em um livro censurado de Edison Carneiro,  Zumbi dos Palmares (Quilombo), em 1960, Zumbi era um personagem que não aparecia nas salas de aula brasileiras. O herói era Domingos Jorge Velho, o bandeirante que trucidou o povo quilombola. Chica da Silva e Chico Rei vieram no mesmo barco, arrebentando em vermelho e branco, através da avenida, a cerca que não os fazia chegar ao ensino formal.

Nas avenidas a cabrocha Lili desfilou sua formosura na feira livre da Caprichosos de Pilares e o cotidiano do perrengue de uma viagem no trem da Central, ramal Japeri, foi cantado pela Em Cima da Hora. Foi escutando samba-enredo muitos cariocas souberam da Guerra de Canudos, da peleja do caboclo Mitavaí contra o monstro Macobeba, da literatura de Lima Barreto, do drama da seca do Nordeste, da vida fabulosa do pai de santo Hilário de Ojuobá. Foi escola de samba que falou de Teresa de Benguela e do Quilombo do Quariterê, da Confederação dos Índios Tamoios, das narrativas dos orixás, dos mitos de origem dos Carajás, de Dom Obá II, Rei da África e das esquinas do Rio de Janeiro, de Joãozinho da Goméia, o Rei do Candomblé.

Instituições complexas, em constante diálogo com a conjuntura, as escolas de samba não se enquadram em modelos prontos. Cantaram a história oficial, se renderam aos patrocínios mais esdrúxulos, louvaram o regime militar, contestaram o regime militar, e retrataram a vida de celebridades duvidosas de ocasião. Ao mesmo tempo, contaram as histórias dos que foram apagados por certas versões da História, deram o protagonismo aos Zumbis, Conselheiros, Aimberês e Teresas de Benguela. Louvaram Luiz Gonzaga, os poetas do cordel, os caboclos de umbanda, os orixás, as iabás, o Cristo negro, a prostituta santa, as mães de santo e do samba.

O desfile da Mangueira de 2019 exaltou as Marias, mahins, Marielles e malês, ao passo que mostrou outra faceta de heróis nacionais, como Duque de Caxias. – Gabriel Nascimento | Riotur

Encaradas por muitos como meras empresas do setor turístico, as escolas de samba podem e devem ser muito mais que isso. Elas podem ser também poderosas instituições culturais de vanguarda; terreiros em que o canto celebrado em tambor escuta a voz e o brado de vida daqueles que, muitas vezes, cantaram na fresta a chance de um Brasil mais generoso.

 Para muitas pessoas, nós nos incluímos nessa turma, elas vibram a espiritualidade da cidade do Rio de Janeiro, cantam seus assombros, espantos, sinas, sortes e, na virada do couro do tambor, chamam os andarilhos de ontem e de agora para celebrar o que há de mais sagrado: a festa.

Desfile da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro de 1971. Arquivo Nacional/Correio da Manhã.

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