São Jorge
Estamos no Rio de Janeiro. Por mais que muita gente torça o nariz, esse misto de futrica, quizumba, espanto e beleza é irremediável. Sendo assim, cantaremos para nossa aldeia e por aquilo que nos faz devotos, erguendo um brinde aos livres de pecado que não carregam o fardo de serem santos. Crianças na rua, cerveja no alto e avante. Com os pés nos subúrbios, quintais, botequins, no entremear dos ritos de fé e folia, traçamos uma aposta sobre a devoção de nossa gente. Somos um povo mais dado às batalhas do que à salvação e isso explica por que temos um guerreiro em nosso andor, carregado por ser gente como a gente. É assim que erguemos em procissão as nossas sinas e sortes.
Avistado no alto das casas de vila, o santo bate perna pela cidade, faz morada em altares alumiados com uma luzinha vermelha, vadeia galante na prata dos bambas, se aconchega nas espadas dos jardins, passeia faceiro nos versos dos sambistas, faz cura nas ladainhas das rezadeiras, come nas feijoadas, se posta imponente nos gongás de umbanda e faz graça nas vigílias dos botequins. Nas terras em que o chamego com o cavaleiro se dá desde muito cedo, pedimos licença para riscar uma assertiva: não há peleja que vença a força do alumbramento de uma criança e o seu olhar miúdo que cata no tempo os signos que montará para desbravar o mundo. Sendo assim, a devoção se dá menos pelo status de santo que pela intimidade, apreço e amor aos ritos que fazem a aldeia.
São Jorge saiu da Capadócia e cruzou o mundo. O guerreiro bate perna em tudo que é canto, mas é no Rio de Janeiro que explode em alvorada, atravessando um mar de cervejas para bradar no ferro dos agogôs, tomar corpos, copos e fazer festa. O terreiro que antes de ser cidade já era aldeia, o incorporou. Dessa forma, o santo caiu para dentro dessa quizumba, escalado não apenas por questão de crença, mas pela inventividade da turma que entende a fé como tarefa cotidiana de fazer dos sonhos uma aposta de esquina.
Nas águas da Guanabara, São Jorge foi virado pelo avesso. Por aqui ele dá batalha e samba. Se interpretarmos tudo de forma literal, pouca coisa se acha. Fazendo do seu avesso o verso, a toada não termina. Baixado nessa encruza, o santo se multiplica para, de modo ordinário, viver como os seus. Qual atributo, afinal, o faz ser tão popular em um lugar como o Rio de Janeiro, senão o fato de ser íntimo e compartilhar os gostos e pelejas da nossa gente comum.