“Só Jesus expulsa o demônio das pessoas”: a vigilância do corpo
Andarilhar pelas ruas do Rio é como escavar o tempo ou mesmo improvisar um verso. Ao contrário daqueles que insistem em encará-la de forma linear, a cidade transita de forma gingada, dribla a retidão e abraça em tempos circulares. Dessa forma, não é difícil a sensação de que o passado assombra o cotidiano do Rio de Janeiro e de que o futuro é uma espécie de aposta acesa em uma esquina.
Da janela do ônibus, do alto da passarela, no entroncamento das ruas, no muro do cemitério, nos quatro cantos dessa casa, escrito a tinta na parede, colado em papel no poste ou entoado dentro dos vagões, salta o verso: “só Jesus expulsa o demônio das pessoas”. Nessa embolada, sobram demônios para tudo quanto é lado: para a cigana, o Tranca Rua, a pombagira e mais um bocado de nomes que são obrigados a pagar uma tal conta de mal.
Nessas bandas, a religião nunca foi somente questão de fé. A cumbuca em que ela come é mais profunda e para entender como Deus e o diabo são invocados, é preciso raspar o fundo da gamela. Nessa toada, vale a pena comprar o verso e dizer que a expulsão do famigerado diz muito sobre como o corpo e tudo que ele pode dar tem sido disputado desde que os europeus aportaram por aqui.
Não coincidentemente, a expressão inscrita e dita por aí vai se juntar com a também famosa saí desse corpo que não te pertence! Mas afinal, que diabos poder ter de ruim um corpo que se quer livre? Um importante filósofo, muito popular na cidade, deu o seguinte papo: “nem todo mal é mal, nem todo bem é bem. Há mal que vem para o bem e tem bem que vem para o mal”. O aforismo dito a torto e a direito por Seu Sete, o Rei da Lira, ajuda a pensar as batalhas entre o bem e o mal, não como meras circunstâncias comuns da vida e dos seus cotidianos, mas como dispositivos que incidem em políticas de controle do corpo.
Enquanto em alguns modos que explicam o mundo a noção de bem e mal se opõe, em outras tradições que atravessam a experiencia brasileira e carioca essas noções estabelecem relações, coexistem, se cruzam e destacam a ambivalência como uma das marcas da trama social e do vivido por aqui. Dessa maneira, é comum em diferentes práticas culturais e nos cotidianos da cidade sermos abraçado pelo seguinte verso: “por aqui, o bem convive com o mal” ou “o que é bom para um poder ser ruim para o outro”.
O que os versos inscritos nos muros, colados nos postes, entoados na trívia ou cuspidos pela boca do exu filósofo nos dizem é que por aqui permanece uma batalha que não é meramente semântica, mas diz muito sobre as possibilidades de ser, suas relações, poderes e maneiras de narrar a vida. Nem todo texto é verbal, mas sempre é parido e alcançado por um corpo.
Aquilo que pode ser lido como uma questão religiosa, quando tomado pela experiência comum diz sobre inúmeras maneiras de relação com as coisas da vida. A expulsão, dominação e conversão é uma narrativa que atravessa a história dessa cidade. Em outro ponto, driblar a lógica que é contrária a diversidade tomando o corpo como lugar de enunciação, memória e comunidade é também uma maneira que muitos grupos encontram de se manter firmes nessa peleja. Se por um lado uns rogam a expulsão, vigilância e controle do corpo, do outro há aqueles que tomam o corpo para si e caem no samba.