Para as crianças, as ruas do Rio já foram um espaço de uma maior convivência, de sociabilidade. Em qualquer lugar, ao alcançar certa idade – o que podia variar em função das peculiaridades de cada família – conquistar as ruas era o primeiro passo para a liberdade e maturidade; para ‘cair no mundo’, enfim. As ruas eram também um espaço para a brincadeira. E para acompanhar os movimentos da cidade, suas novidades e transformações. Estamos na região do gasômetro em São Cristóvão. Crianças observam a presença do fotógrafo. Talvez nunca mesmo tivessem pisado em um estúdio; talvez nunca mesmo tivessem posado para uma fotografia; sabe-se lá.
Estão todos descalços, calças compridas e camisas de manga comprida. O menino da direita usa um uniforme; provavelmente todas aquelas roupas têm história pregressa. O registro dos dois meninos das extremidades é melhor; os do meio estão ‘borrados’ ou ‘tremidos’ porque estavam em movimento por ocasião da tomada da fotografia, do ‘click’. Mas os edifícios e postes estão perfeitos; e para o objetivo daquele registro, isto é o que importa; e os elementos humanos em movimento só acrescentam valor à imagem, conferem vida à mesma – assim pensava o fotógrafo.
O detalhe dos dois meninos da esquerda dá o que pensar. Quem são eles e por que estão ali? De onde vieram e para onde terão ido? O que está mais à esquerda tem traços indígenas, talvez. O da direita é afrodescendente com certeza e sua imagem é fluida. Os pés estão firmes ao chão; mas as pernas se fundem ao pavimento e seu rosto, à parede.
Aqui temos uma fotografia tomada em Vila Isabel, onde a Light construía uma de suas garagens. Observe-se o menino que está sobre o muro, à esquerda.
O pano amarrado à volta do rosto (provavelmente uma fralda) nos remete ao tempo em que os comprimidos analgésicos e anti-inflamatórios não eram comuns e os serviços de odontologia estavam longe do padrão e possibilidades atuais. Esse pano faz lembrar, ainda, que este era um recurso terapêutico comumente utilizado quando a criança pegava a caxumba ou papeira e ficava isolada, nos primeiros dias.
Ao fundo, vemos um carregador que segue o seu caminho portando aves, talvez, em dois jacás – os cestos trançados de taquara ou cipó. Ao seu lado, um cidadão alinhado, vestindo um chapéu de abas retas com fita, tipo boater (palheta) que parou para posar, assim como alguns dos trabalhadores que estão no piso superior da construção (como se verá no próximo slide).
Estes detalhes nos permitem atentar, ainda, para outros aspectos – a luminária na rua, a arquitetura circundante, o sistema de andaimes e o estilo construtivo da edificação, com tijolos.
Nesta fotografia fica evidente o interesse da criançada nas atividades do fotógrafo e até mesmo, quem sabe, em integrar a cena da fotografia. O tempo de exposição mais longo fez com que aquelas que se deslocavam ficassem ‘borradas’, estabelecendo uma dinâmica especial ao registro. O menino com dores de dente (ou convalescendo da caxumba) está agora acompanhado de outro, ambos equilibrados sobre o tapume.
O detalhe da imagem passa uma impressão de familiaridade, de entrosamento entre eles. Há uma certa encenação, mesmo que espontânea. Estão descalços, em sua maioria. Há meninos e meninas, e um cão. A menina à direita, alcançando o topo do tapume, talvez pretendesse chegar junto aos meninos antes da foto! Mas não deu tempo. A dupla lá em cima parece satisfeita e posa para o fotógrafo, com certeza, sendo ainda observada por um dos meninos que permaneceu no chão, de chapéu.
Aqui temos a rua da Glória à esquerda, mais alta, e a rua Augusto Severo à direita. Embora não seja visto nesta fotografia, um paredão de pedras construído em 1904 na gestão de Pereira Passos sustenta o desnível entre as duas ruas, ornado com a balaustrada de bronze trazida do jardim da praça Tiradentes. Na extremidade, sobre a coluna cilíndrica em granito esculpido, o relógio Krussman instalado em 1905 – de quatro faces, com mostradores iluminados – marca 15h12min. Um animado grupo de crianças voltando de uma escola feminina – o Colégio Imaculada Conceição em Botafogo, talvez? – se aglomera na calçada, que não tem largura suficiente para todas abrigar. Na parada, um bonde de primeira classe que segue para o Largo dos Leões, Botafogo (via Catete, Marquês de Abrantes e Voluntários da Pátria), puxando um carro de segunda classe; este, apinhado. Todos trajando seus chapéus. Logo atrás, vem o bonde rumo às Águas Férreas, hoje Cosme Velho.
No detalhe, vemos que a meninada desperta a atenção de quase todos os passageiros do bonde, exceto dois: um vetusto senhor trajando terno e chapéu coco e sentado à terceira fila, que não desprega os olhos de seu jornal e o fiscal, em pé na traseira do bonde e concentrado em suas anotações. As escolas femininas, bem sabemos, já existiam por aqui desde meados do século XIX. Mas para uma minoria, apenas. A este propósito, ainda, vale lembrar que a entrada das mulheres no ensino fundamental do Rio, como professoras, foi um processo lento e gradual – apenas no fim do século XIX é que passou-se a admitir mulheres nos cursos normais, o que fomentou sua inserção no ensino para meninas e meninos; estes últimos, em idade de até cerca de 14 anos, somente.
O que era para ser apenas uma fotografia para a Light, acerca dos serviços de bonde, pode suscitar muito mais. E quanta informação neste detalhe! O elaborado uniforme das meninas pode ser apreciado da cabeça aos pés Entre os acessórios, vemos guarda-chuvas e... o que leva aquela malinha? E como eram os materiais escolares de então? Este mesmo detalhe nos traz à lembrança outro fato; que os uniformes escolares nos cursos fundamentais das escolas públicas, por aqui, eram igualmente novidade no início do século XX. Mas as normas eram tão rígidas que as supostas boas intenções — ou seja, a de equiparar os alunos através dos modos de vestir — acabaram por discriminar, ainda mais, a frequência dos menos favorecidos — majoritariamente formada pela população negra, historicamente apartada do acesso às salas de aula. Quantas histórias e quantas memórias, na trajetória da educação fundamental de nossa cidade...
Aqui uma das mais belas fotografias de Mortimer, tirada em 1910, da estação terminal da antiga Estrada de Ferro d. Pedro II, inaugurada em 1858, onde hoje temos outro edifício da E. F. Central do Brasil, inaugurado em 1943. No largo à frente da estação há bondes para a Lapa, a rua Estrela no Rio Comprido e as barcas da praça XV — afora os que estão ao fundo e cujos letreiros não estão legíveis. Ao fundo do edifício, o morro da Providência. Naqueles tempos, o Campo de Santana chegava ali perto. E o túnel João Ricardo, conectando a Central à zona portuária, ainda não havia sido aberto. Dali partiam os trens para os estados do Rio, São Paulo e Minas. E aquela estação era e continua sendo a melhor opção para quem precisa deslocar-se, a partir do Centro, para uma série de bairros da Zona Norte e Baixada Fluminense.
No espaço à frente do majestoso edifício, o brasão da República foi instalado, estranhamente, sobre uma janela abaixo do grande relógio no centro da fachada — apesar de estar no centro e no alto, como manda o protocolo, o brasão está defronte uma janela, impedindo, portanto, a entrada de luz por aquela abertura. Na balaustrada foram aplicadas grandes letras, “EFCB”, que provavelmente ficavam iluminadas à noite. À frente do edifício, vemos bondes e carruagens e uma estátua em homenagem a Cristiano Benedito Ottoni (1811-1896), considerado o pai das estradas de ferro no Brasil e engenheiro responsável pela construção daquela estação — além de seu diretor. Estátua hoje um tanto esquecida, integrada à base da fachada, na esquina junto à entrada da torre da Central do Brasil. E a grande estátua de Almeida Reis que encima o relógio, intitulada “O Progresso”, vale dizer, hoje encontra-se na Escola de Belas Artes da UFRJ, na ilha do Fundão.
Um outro detalhe da mesma fotografia chama a atenção do observador atento: entre bondes em movimento e passantes/caminhantes para lá e para cá, um adulto se agacha para escutar a criança que parou, um pé à frente do outro, fazendo gestos com as mãos enquanto fala... e nos deixa curiosos, a pensar o que se passa... E quais seriam as sensações, por exemplo, de uma criança que subia em um bonde pela primeira vez? Ou era levada ao centro da cidade? Apenas duas possibilidades entre tantas que podem ser evocadas pela imagem. Com o leitor, a imaginação! Vale observar, ainda, além das luminárias e das árvores, a elegância do condutor do bonde, no canto direito da imagem.