Os primórdios da Maré: dos bairros à favela
Quando a Maré começou a existir? A resposta dessa pergunta se liga diretamente ao entendimento do que os territórios que compõem a Maré atualmente são e foram. Bairros? Favelas?
Até o começo do século XX, a Praia de Maria Angu abrigou um porto, responsável pelo escoamento da produção de diversas fazendas localizadas em Irajá, Inhaúma e outros bairros da região. Essa antiga praia foi aterrada e hoje se localiza na área da Penha e Ramos, às margens da Avenida Brasil, na atual 30ª Região Administrativa da cidade do Rio de Janeiro, a Maré.
Ao longo do tempo, um território pode passar por muitas transformações. Ruas, equipamentos urbanos, moradias, moradores, nomes… Essas transformações mudam referências, alteram as percepções de quem mora ou passa por ali, criam e recriam identidades.
No ano de 1906, o recenseamento predial e domiciliar feito na então capital federal apontou algumas moradias localizadas em áreas e ruas que, futuramente, se tornaram parte de algumas favelas da Maré. A praia de Maria Angu tinha 17 casas com apenas um pavimento. Já a rua Nova Jerusalém, tinha 11 casas, também com apenas um pavimento – atualmente, ela é a principal artéria da Baixa do Sapateiro, uma das favelas mais antigas da Maré, estabelecida como tal na década de 1940.
Na planta da Cidade do Rio, feita pela Secretaria de Viação e Obras em 1935, já aparecem diversas casas na Rua dos Caetés – atual Morro do Timbau – e, na Rua Nova Jerusalém, quase trinta anos após o recenseamento predial de 1906 constam mais de 30 residências.
Gradualmente, essas simples casas isoladas foram ganhando vizinhos. Mais gente, mais casas… Algumas pessoas subiram o morro, outras ocuparam as margens da Baía de Guanabara, algumas até adentraram o mar. O território mudava novamente: as favelas surgiram, cresceram e se estruturaram como lugares distintos do bairro e entre si.
O antigo Porto de Inhaúma, um dos atracadouros por onde chegavam os barcos do intenso fluxo comercial da Baía de Guanabara, perdeu importância a partir da modernização do Porto do Rio e a instalação da linha férrea, com estações bem próximas dali, como a Estação de Bom Sucesso.
Comparando a planta de 1935 com uma imagem de satélite recente, vemos que o maior número de moradias, o tamanho dos lotes e as ruas estreitas forneceram ferramentas para que a área fosse lida como favela por parte da sociedade carioca. Foi a partir dessas variadas transformações que essa parte da cidade, antiga Praia de Inhaúma, se transformou em Bom Sucesso (antes grafado assim, separado mesmo). Um bairro típico do subúrbio carioca, com linha de trem, chácaras, depois fábricas… e favelas, que não surgiram como “favelas”.
Eram casas mais pobres, mas não tão diferentes das casas de pescadores que há décadas habitavam o local. Os próprios nomes das paróquias da área remetem ao mar e à atividade pesqueira, como a Igreja Nossa Senhora dos Navegantes, inaugurada na década de 1950. A casa na palafita, tecnologia de construção utilizada por ribeirinhos, marcou a paisagem dessa orla por décadas.