Mercadão de Madureira: o shopping da macumba nas terras do vaqueiro Madureira
No Brasil, as expressões de fé, a intimidade com o sagrado e o espanto com os ritos comunitários que trançam o que muitos chamam de religiosidade tem cor, gosto, cheiro, som, ritmo e corpo. Assim, não há ambiente mais propício para que essas coisas batam perna do que um bom e velho mercado. De uma ponta a outra desse país, são muitos os mercados e feiras que fazem sucesso. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, não existe nome que tenha mais destaque do que o do Mercadão de Madureira, apelidado carinhosamente de shopping da macumba.
A história do mercado é longa, assim como é a da vizinha Portela. Parodiando o Mestre Monarco no samba Passado de Glória, em homenagem à agremiação, “se for falar do Mercadão, hoje não vou terminar”. Mesmo assim, diante de tamanha riqueza para a história e cultura da cidade, há aspectos que precisamos ressaltar nessa breve conversa. O primeiro é o de que a compreensão de mercado no Brasil não se reduz a um espaço de trocas materiais em que o valor monetário das coisas impera. Por aqui a noção de mercado é plural e fortemente influenciada pelos modos e saberes negro-africanos.
Sendo o Rio de Janeiro umas das cidades que receberam o maior número de pessoas escravizadas vindas do continente africano, é comum o entendimento do mercado não como propriedade dos humanos, mas como lugar regido pelo sagrado. Desta maneira, as pessoas que o praticam interagem com seus princípios e forças. Para além de uma leitura desencantada que o vê apenas como lugar de lucro, o mercado é constituído pelo dinamismo das relações, comunicações e trocas primadas por aspectos políticos e simbólicos.
No Mercadão de Madureira há de tudo para se fazer uma boa fé: você encontra da vela ao fumo, da folha à fava, do bicho de quatro pés às bancas do jogo do bicho, do santo cristão ao pagão. Em outras palavras, pelas galerias, barracas, andares e lojas do Mercadão se compra de tudo para firmar a aposta, até mesmo aquilo que não está à venda. Ali se negociam a cisma, a futrica, o segredo, o enredo, a paixão, o desafeto, o verso e a prosa. Quem pede licença ao entrar no mercado e se atenta a seus vários textos, pode comprar o que não está sendo vendido, mas circula no jogo.
Quem vai atrás de comprar um obi, fruto africano, ganha um mito. Quem passeia pelas bancas de ervas a procura do galho de arruda, leva uma reza. Quem vai em busca de uma imagem, ganha uma promessa alcançada. Quem pechincha demais, aumenta o preço. Quem leva a garrafa de cachaça, tem que pagar uma dose para o primeiro pé de cana que aparece. O mercado é assim; quem tem vista forte e escuta atenta, perceberá nele o mundo inteiro.
O mercadão teve seu fundamento plantado em 1914, ainda como uma quitanda de produtos agrícolas. Ao longo dos anos, passeou por diferentes lugares do bairro, até que em 1959, nos governos do prefeito Sá Freire Alvim e do presidente Juscelino Kubitschek, fincou tenda na Avenida Ministro Edgard Romero, onde permanece até os dias de hoje. Firmado nas terras do boiadeiro Lourenço Madureira, sujeito que arrendou na primeira metade do século XIX as terras do sertão carioca que deram origem ao bairro que leva seu nome, o Mercadão ganhou o título de bem imaterial do Rio e é personagem fundamental do cotidiano da cidade.
Nas flores jogadas ao mar no réveillon, nas rendas do carnaval, nas velas queimadas nas esquinas, nas pipas que bordam o céu suburbano, nos doces das crianças, na cerveja gelada que se toma com o santo, no sacrifício que multiplica o axé ou em outras infinitas práticas miúdas que se cultivam nessa cidade, o velho mercado com nome de boiadeiro escancara a sua porteira e diz: o mundo passa aqui, entre.