Meningite: a epidemia que a ditadura militar não conseguiu esconder
Um samba de cadência suave é invadido por um vozerio confuso, choro de crianças e a fala de um homem, que diz “dá licença, dá licença; olha o menino com meningite passando, afasta aí, afasta aí”. Assim começa a interpretação do grupo MPB-4 para “Tá Certo, Doutor”, canção de Gonzaguinha. Lançada em 1974, era como um retrato musical das alas de isolamento do Hospital São Sebastião – localizado no bairro do Caju, Rio de Janeiro. Para lá eram encaminhados os pacientes com suspeita de meningite – uma inflamação das membranas do cérebro. Dos mil casos da doença que deram entrada no São Sebastião naquele ano, crianças em sua maioria, cerca de trezentos foram a óbito.
A primeira epidemia de meningite meningocócica no Rio de Janeiro e no Brasil ocorreu no início dos anos 1920. Na década de 1940, a doença passou a ser considerada endêmica no país – quando a transmissão se mantém permanente e com uma média constante de casos anuais. Em 1970, porém, a enfermidade atingiu níveis alarmantes. A explosão dos casos foi provocada por não apenas um, mas dois tipos da doença: uma epidemia do tipo C, que começou em 1971, se manteve sem controle por anos até se somar a uma nova cepa, do tipo A, que se espalhou ainda mais rapidamente entre a população no primeiro semestre de 1974. A doença, transmitida majoritariamente por gotículas de saliva (fala, tosse, beijo), pode ser confundida com uma gripe comum. Mas entre os sintomas que alertam para seu contágio específico estão vômitos em jato, dores na região da nuca e rigidez no pescoço.
No dia 26 de julho de 1974, o Diário de Notícias trazia em sua primeira página a manchete: “Internações já chegam a 320, mas meningite é assunto proibido no Rio”. Na mesma semana, outro diário carioca, O Globo, também se pronunciava: “o silêncio não cura, nem previne”. Enquanto isso, uma circular interna, assinada pelo Diretor-Geral da Polícia Federal, Cel. Moacyr Coelho, não apenas orientava, mas reiterava a proibição da divulgação de “dados numéricos, gráficos e estatísticos [sic] sobre meningite”. Na primeira metade dos anos 1970, quando a taxa de crescimento da epidemia passava dos 10% ao ano, tudo que os governos dos generais Médici (1969-1974) e Geisel (1974-1979) menos queriam eram notícias de uma crise sanitária no país manchando a imagem do “milagre econômico”. Para a ditadura, meningite era assunto de segurança nacional: uma questão não apenas de saúde, mas de polícia. E o remédio para a epidemia era a censura.
Radiograma proíbe divulgação de dados sobre a meningite
A falta de informação levou parte da população a se automedicar. Além de “misturas e remedinhos” – principalmente aqueles à base de cânfora –, o uso indiscriminado de antibióticos, além de certamente intoxicar alguns usuários, pode ter aumentado a resistência das bactérias causadoras das doenças.
Quando ficou impossível maquiar os fatos, o foco do governo passou a ser a vacinação. O Ministério da Saúde importou milhões de doses de uma vacina ainda em caráter experimental, e o Rio de Janeiro teve a maior parte de sua população imunizada entre fins de 1974 e início do ano seguinte. Em 1976 foi criado o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos no bairro de Manguinhos, na capital carioca. O Bio-Manguinhos se tornou a unidade produtora de vacinas contra a meningite e outras doenças. E até hoje é uma referência nacional.
Este texto foi elaborado pelo pesquisador Davi Aroeira Kacowicz do Projeto República (UFMG)