Rio: suas margens africanas
Mar: azul horizonte, azul infinito
A África inteira baila no dorso de suas ondas
(Paulina Chiziane, O canto dos escravizados)
O Oceano Atlântico carioca não começa nas suas praias de areia branca e mar azul esverdeado, com horizonte infinito. Há ao menos dois começos: um, nas montanhas da serra cujo nome lhe faz referência – a Serra do Mar – e outro do outro lado, nos portos africanos, que também recebem rios de seu interior. Águas que nascem de montanhas e vales e correm para desaguar no grande espaço líquido luminoso, que ginga pela ação dos ventos, e esconde nas profundezas muitas histórias e mistérios. Calmarias e tempestades fizeram desse oceano um desafio, sempre enfrentado com coragem e muito medo.
Nas terras d’África, o Atlântico que alcançou as margens do Rio de Janeiro veio inicialmente da África Ocidental e Centro-Ocidental — mais intensamente desta região do continente. São Tomé e Príncipe, o arquipélago, funcionou como ponto de intermediação de muitas embarcações que carregavam escravizados trazidos do litoral norte da desembocadura do rio Zaire e das terras em torno de sua enorme bacia hidrográfica. Uma quase terceira margem, eram assim as ilhas africanas no Atlântico, e tornaram-se verdadeiros laboratórios de experiências nos trópicos no início da Modernidade europeia. Nelas, os primeiros engenhos de cana-de-açúcar foram testados e trazidos para o território brasileiro e, atravessadas pela linha imaginária do Equador, assinalam o espaço em que se convencionou dividir o oceano Atlântico em partes Norte e Sul. Conectam-se ao Rio atlântico nas rotas oceânicas que transportaram pessoas escravizadas, com seus conhecimentos, tecnologias, experiências e visões de mundo.
O antigo reino do Congo, grande e soberano, cujos monarcas converteram-se à fé católica desde o século XV, entre resistências e negociações, entregava seus prisioneiros aos mercadores de africanos escravizados. O porto fluvial de Mpinda, próximo à desembocadura do rio Zaire (rio Congo), controlado pelo rei do Congo, tornou-se a conexão atlântica continental principal, inicialmente. A demanda por cativos cresceu e o que fazia parte de uma prática reconhecida localmente, ultrapassou em dimensão demográfica o que poderia ser considerado dentro das fronteiras éticas e surgiram protestos dentro mesmo das elites congolesas. Fugas, rebeliões, revoltas nos armazéns e nos barcos levantaram as ondas nesse Atlântico de dor. Muitas pessoas trazidas escravizadas da região dominada pelo antigo reino do Congo seguiram lutando por liberdade sob as durezas da escravidão no Rio de Janeiro e, para alcançá-la, se valeram do enfrentamento direto e também de seus talentos e conhecimentos. Em 1851, um grupo de libertos congo na cidade do Rio de Janeiro conseguiu se organizar para tentar empreender uma viagem de volta à sua terra natal, e para tal solicitou o apoio dos ingleses. Desde um Rio atlântico, miravam a outra margem, com projetos para a África.
Quando eu venho de Luanda
eu não venho só
Quando eu venho de Luanda
eu não venho só
(Trecho da canção “Arrancado de lá Luanda”, Mestre Toni Vargas)
A ilha de Luanda, com a cidade de São Paulo de Luanda em frente, tornou-se, ao longo do tempo, a mais importante margem africana do Rio de Janeiro atlântico. A expulsão dos holandeses desta cidade africana em fins do século XVII só foi possível de ocorrer com a participação de uma expedição militar que saiu do Rio de Janeiro, financiada em grande parte com o capital de comerciantes estabelecidos na cidade, e comandada por Salvador Correia de Sá e Benevides, que fora governador da Capitania do Rio de Janeiro. Após a vitória deste grupo, com forte participação da população local, os laços se fortaleceram e a cidade africana passou a ser governada por ele. As rotas de comércio, em especial do tráfico atlântico de africanos escravizados, intensificaram a relação entre Rio e Luanda, num ir e vir constante de pessoas, mercadorias, notícias e ideias. Redes mercantis e de parentesco criavam ligações entre estas cidades nas duas margens, que logo se estenderam mais ao sul da costa africana e incorporaram Benguela. Dos portos da atual Angola foi trazida a maior parte dos cativos que desembarcaram no Rio de Janeiro, e com eles e elas, além da força de trabalho e inteligência, vieram as quitandas, os batuques e o semba — ingredientes fundamentais e bases da cultura carioca. A proximidade foi intensificada ao longo do tempo, fazendo do Rio de Janeiro o principal destino também de gente livre ou liberta que vem desta parte da África.
Dentro do meu alforje
Quem me alforria e ilumina
É uma oração de são Jorge
Guerreiro lá da Costa da Mina
(Trecho de “São Jorge da Costa da Mina”, de Romildo e Sérgio Fonseca)
A região costeira da África Ocidental que vai do litoral da atual República de Gana até o delta do rio Níger ficou conhecida como Costa da Mina, se insere no Golfo da Guiné e engloba o Golfo do Benim. Este nome faz referência à fortaleza de São Jorge da Mina, construída no século XV por iniciativa dos portugueses, preocupados em resguardar sua primazia como intermediários estrangeiros no comércio atlântico com aquela costa. As rotas do ouro que corriam em direção ao interior daquele território justificavam nomeá-lo assim, bem como o santo de fé, um guerreiro e santo patrono de Portugal. Deste castelo — no dizer da época — embarcou o ouro da mina e, com o passar do tempo, o outro ouro, vivo: as pessoas escravizadas. Os africanos e as africanas que eram comercializados nesta fortaleza ficaram conhecidos como pretos e pretas minas no Rio de Janeiro. Entre estes havia mahís, daomeanos, iorubás, hauçás e de outras origens e procedências. A nação mina no Rio de Janeiro foi se formando e constituindo um verdadeiro guarda chuva identitário, processo que foi muito bem estudado pela historiadora Mariza de Carvalho Soares. Circulando pela cidade, atuando no comércio, formando irmandades religiosas com práticas de um catolicismo africanizado, conspirando fugas, criando terreiros de religiosidades de matrizes africanas e lutando pela liberdade, os minas se tornaram conhecidos na cidade, ainda que não fossem a maioria. A Costa da Mina com seus portos é, portanto, uma das margens do Rio Atlântico.
Tumba lá e cá
É Moçambique
(Trecho de “Sou amigo do rei”, samba enredo do Salgueiro, 1990 )
Trazidos da costa oriental africana, os chamados moçambiques estiveram entre os que chegaram mais tarde no Rio de Janeiro, se comparados aos outros africanos escravizados aqui desembarcados. Suas origens em África poderiam ser os povos macuas, iaôs (chamados de muchaus, mujaus ou mugãos no Rio) ou tumbucas, e foram registrados como moçambiques ou inhambanes na sua chegada à cidade. Particularmente numerosos no período de maior atividade do Cais do Valongo, chegaram nos anos 1820 a compor mais de um quarto dos cativos trazidos nos navios escravistas, segundo a historiadora Mary Karasch. Os ritmos, as marcas identitárias e as celebrações festivas religiosas conhecidas como moçambiques se originam na presença destas pessoas, e tanto ocupam espaços da cidade como se espalham a partir dela, conectando o Rio Atlântico à sua margem no Oceano Índico, na Ilha de Moçambique. Nesta ilha, ponto de partida e chegada de embarcações do Rio de Janeiro, também é São Sebastião o padroeiro que nomeia a fortaleza que foi nela construída por iniciativa portuguesa.