A cidade dos pianos

Em 1856 o escritor, pintor e escritor (e futuro barão de Santo Ângelo), Manuel Araújo Porto-Alegre, chamou o Rio de Janeiro de “a cidade dos pianos […] uma “verdadeira pianópolis”. A alcunha não era por acaso: na segunda metade do século XIX, uma tradição pianística passou a se instalar nos lares, salões e teatros do Rio de Janeiro. O instrumento se tornou símbolo de distinção: o piano era tanto um mobiliário doméstico de luxo quanto uma prova de um almejado (e pretenso) progresso civilizatório — típico da segunda metade do século XIX.

Entre as décadas de 1850 e 1860, a capital fluminense experimentava o auge de um processo de urbanização e de efervescência cultural. A industrialização começava a tomar corpo, o café consolidava-se como principal força da economia, e o fim do tráfico negreiro alterava profundamente a estrutura social. Nesse cenário, os costumes também mudavam: as elites buscavam novos modos de lazer e sociabilidade, e a música, em especial a feita ao piano, tornou-se o coração dessa nova vida urbana.
Até meados do século XIX, as festas e saraus eram marcados pelo som das violas e rabecas, instrumentos populares que ecoavam nas chácaras e casarões da cidade. Mas o piano, importado da Europa e caríssimo — custava quase o mesmo que um escravizado —, assumiu o papel de protagonista sonoro e objeto de desejo burguês. Tocá-lo, tê-lo e exibi-lo eram demonstrações de prestígio.

A presença inglesa no comércio do Rio e a abertura cultural promovida pela Corte impulsionaram a expansão desse mercado. Jornais como o Jornal do Commercio e o Correio Mercantil publicavam anúncios de lojas que revendiam pianos importados de Londres e Paris — de marcas como Erard, Broadwood e Collard —, com certificados de autenticidade e garantias contra falsificações. A rua do Ouvidor e a rua dos Ourives tornaram-se vitrines do luxo musical da cidade, onde se alugavam, afinavam e vendiam instrumentos de cauda e armário, além de partituras e acessórios, como se pode ler neste anúncio: “Pianos de Erard – único deposito, na rua do Ouvidor n.66, sobrado – Os legítimos pianos deste grande.autor não se vendem senão nesta casa, e cada um delles está afiançado pelo certificado assignado pelo proprio autor, que se entrega ao comprador. Todos os pianos de Erard vendidos sem aquelle certificado, desde o lº de maio de 1848, são falsificados” (Jornal do Commercio – 8/7/1850 – p.2).
Com o piano transformou-se também o modo de se ouvir música no Brasil, particularmente na capital. Como observa José Ramos Tinhorão, o piano trouxe ao Rio o hábito moderno de escutar música, inaugurando uma nova relação entre público e espetáculo. Nos saraus, nas residências aristocráticas ou nos cafés e teatros recém-inaugurados, a música deixou de ser apenas acompanhamento para se tornar centro das atenções. Essa “cultura do ouvir” foi reforçada pela vinda de virtuoses estrangeiros, que encantaram o público com recitais e concertos de altíssimo nível técnico.

defronte ao piano. Vida Fluminense, n.76, 12 de junho de 1869. Fundação
Biblioteca Nacional
A passagem do pianista austríaco Sigismond Thalberg, em 1855, foi um divisor de águas: rival de Liszt na Europa, ele mostrou às elites do Império que o piano podia ser arte e espetáculo. Poucos anos depois, Artur Napoleão e Louis Moreau Gottschalk ampliaram esse fascínio. Este último protagonizou, em 1869, um lendário “concerto monstro”: dizem os jornais que 31 pianistas e duas orquestras teriam se reunido no Teatro Lírico — não especificando quantos músicos e quantos pianos ocuparam o palco simultaneamente.
Mas o piano não viveu apenas nos salões da aristocracia. Aos poucos, ele dialogou com as sonoridades populares da cidade: modinhas, lundus e batuques começaram a se misturar com valsas, polcas, mazurcas e quadrilhas importadas. Dessas fusões, nasceria a alma musical carioca — expressa no maxixe e no choro, gêneros urbanos que reinventaram o piano com sotaque brasileiro. A maestrina Chiquinha Gonzaga — uma das figuras mais notáveis dessa transição —, e o pianista Ernesto Nazareth são dois ícones que transformaram o instrumento em ponte entre o salão e a rua, entre a elite e o popular.

Com o passar do tempo o item se tornou mobiliário comum também nas camadas médias urbanas. E na década de 1950, competições como o Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro, com centenas de participantes de mais de trinta nacionalidades, são uma amostra da popularidade do instrumento no país. Na primeira edição do concurso, em 1957, plateias abarrotadas, ingressos esgotados antecipadamente, além das robustas premiações pagas em dólar dão o grau da importância social do evento, sediado no Teatro Municipal. As reportagens destacaram o afã do público em busca de autógrafos – e arranjando espaço para elencar os galãs da competição. Fotografias registraram os cordões policiais de isolamento para conter a multidão que ficou de fora. A revista O Cruzeiro chegou a comparar a popularidade do piano com o gosto popular pelos “desportes e outras atividades festivas”.

Assim, o Rio de Janeiro do século XIX foi, por mais de um século, uma cidade moldada pelo som do piano. Nessa pianópolis tropical, o instrumento marcou o compasso de uma época de mudanças profundas. De símbolo aristocrático a veículo de brasilidade, a capital do Brasil, nas teclas do piano, encontrou uma voz.
