Gentileza gera gentileza
A palavra na boca do povo diz que todo poeta é também profeta. Para muitas culturas o sagrado é também uma poética e a palavra tem o poder de conduzir, erguer e materializar mundos. Nas muitas sabenças atravessadas pelo oceano que aportaram aqui a palavra não é mero recurso comunicativo. Lançada como uma flecha, que disparada da boca, ela ata som, ritmo, hálito e tem o poder de criar. Não coincidentemente, em grande parte das tradições negro-africanas nas Américas o princípio que fundamenta a comunicação é também aquele que se expressa como força criadora e participante de tudo que existe, existiu e ainda irá existir.
A palavra tem poder, como diriam os antigos. Entretanto, não é somente a palavra dita, mas também riscada. Em uma cidade como o Rio de Janeiro uma das expressões populares mais conhecidas para se referir aos conhecimentos que circulam no universo das religiosidades de sua gente é dizer que fulano ou beltrano entende do riscado. Entender do riscado remonta a capacidade de escarafunchar as textualidades do sagrado que se inscreve como poética. Sendo a palavra uma embolada entre ritmos, sons, hálitos, cores, texturas e corpos ela corre mundos caçando um jeito de expressar o sagrado, seus mistérios, espantos, belezas e ritos de fé. A palavra como uma espiritualidade está lançada na cidade, na boca do povo e da rua.
Foi nas ruas do Rio que uma das almas mais encantadoras, gentis e, paradoxalmente, explosivas, por aqui baixou, se expandiu como arte, vida e conhecimento em palavras costuradas em pregações públicas e encarnadas nas paredes de concreto. Estamos falando do profeta Gentileza, José Datrino, o homem de origem humilde, tecido na mística encantada daqueles que tem escuta sensível e vista forte para a beleza e espanto da vida. O profeta Gentileza durante anos pregou nas ruas do Rio de Janeiro e foi responsável por 56 murais no Viaduto do Caju, zona portuária, que traziam expressões como: “não usem problemas, não usem pobreza, usem amor e gentileza”, e a mais famosa expressão: “gentileza gera gentileza”.
As ruas como lugar de memória contam que a saga andarilha, de amor e fé do profeta costura episódios de uma infância simples em meio ao trabalho rural, mas já marcada pela beleza e o espanto de uma mística encantada. Outro momento importante dessa caminhada é, já na fase adulta, a tragédia do incêndio do Gran Circus Norte-americano, na cidade de Niterói. Esse foi um episódio importante que deu sentido ao diálogo com as vozes astrais, que o próprio profeta afirmava que chamavam a um propósito de vida dedicado ao amor, gratidão e a gentileza.
Ao falar dos espíritos, belezas e espantos do Rio de Janeiro, não podemos deixar de falar do profeta que fez da poética um lugar de defesa da vida, amor e gentileza. Ele encarna toda a mística dos pregadores alucinados e visionários da cidade, evocando esses aspectos para montar nas palavras e se avivar nas ruas cariocas.