Do tablado ao palco das ruas
O primeiro sinal toca, o público entra. Os espectadores vão se acomodando. O segundo sinal, ainda compreensivo com os atrasados, dá a deixa de que ainda é possível levantar um pouquinho, quem sabe correr ao toilette antes de o espetáculo começar. Soa o terceiro sinal: a peça vai começar. Todo público de teatro tradicional já conhece bem esse ritual, que combina os avisos sonoros aos tons de luzes que vão baixando, convidando todos ao silêncio.
Quem frequenta o Theatro Municipal do Rio de Janeiro sabe que a experiência vai ser marcada por essa espécie de preparação, ensaio para uma imersão. Nos segundos de completa escuridão antes de os fagotes, oboés, primeiros e segundos violinos ressoarem, o interior do enorme edifício aguarda na sombra o momento de afirmar sua vocação para o grande espetáculo.
Mas a arte também se desdobra fora de edifícios históricos e salas de teatro. Quando a voz e o corpo do artista bastam, a rua é companhia. É no que acredita o grupo Tá na rua, por exemplo. Em atividade há quase 40 anos, seus artistas harmonizam referências tão díspares quanto Shakespeare e orixás, dispensam o tradicional tablado ou aparelhos de ampliação de voz, evocam o improviso e a simplicidade. O cenário é a rua, que atravessa o cortejo com suas sonoridades espontâneas. “A cidade é por si teatral e dramática”, diz Amir Haddad, fundador do grupo. A peça encenada na rua pode ganhar ares de uma festa popular, embalada também por cantos e tambores, como em um carnaval.
Falando em Carnaval, o grupo integrou o desfile Ratos e urubus, larguem minha fantasia, da escola de samba Beija-Flor, cuja polêmica decisão de trazer o Cristo Redentor vestido de mendigo, e que foi vetada pela justiça, marcou o Carnaval de 1989. Há quem diga que um desfile de escola de samba é também uma espécie de teatro. Implica, afinal, em encenação, narrativa, explosão de sons, cadências. Trinta anos depois de Ratos e urubus, por exemplo, a Beija-Flor dramatizou os problemas sociais do país, trazendo à cena da rua-palco-Sapucaí as mazelas do Brasil, no enredo que foi vencedor do desfile. E, em 2019, a Mangueira arrebatou o público e se sagrou campeã, ao lançar luz, no Sambódromo, às histórias de heróis que a história oficial não conta: mulheres, mulatos e tamoios, Marias, Mahins, Marielles, malês.