Do circo ao Centro

Autora: Lavínia Vitória Nunes do Nascimento

O circo escola Benjamin de Oliveira é um projeto mantido pela ONG “Se essa rua fosse minha”, localizada em São João de Meriti, Região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, criada com o intuito ensinar para crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade as artes circenses, teatro e dança. Mais que isso, a ONG busca usar seu espaço para incentivar o diálogo, promover debates e ações de convivência e integração social, multiplicação dos saberes, exercícios de cidadania, conscientização, defesa de direitos e valorização do protagonismo juvenil. O SER (Se essa rua fosse minha) costuma fazer parcerias com escolas do bairro em que o circo se localiza, a fim de alcançar ainda mais jovens e fazer com que eles se interessem pela arte, a cultura, a história e aprendam a valorizar sua própria existência e valor enquanto indivíduo da sociedade.

Eu fui aluna dessa ONG durante três anos e lá eu participei de inúmeras rodas de conversa, oficinas de dança, percussão, artes plásticas, artes teatrais ou simplesmente brincadeiras desenvolvidas para deixar as crianças mais confortáveis e incluídas no espaço do circo.  E foi nessas atividades que pude aprender e me conectar com pessoas de diferentes raças, religiões, sexualidades e movimentos sociais que eu nunca havia pensado em conhecer. Aprendi a ouvir e também tive meu momento para falar sobre mim e sobre minha origem. O circo teve um papel fundamental no meu desenvolvimento enquanto pessoa e, por isso, escolhi falar sobre algumas das experiências que pude desfrutar graças a ele.

Foto retirada de:
fotospublicas.com/dois-jovens-do-circo-escola-benjamin-de-oliveira-de-sao-joao-de-meriti-representarao-o-pais-no-festival-internacional-de-circo-social/

Antes da pandemia, anualmente o circo promovia um evento chamado “Candelária Nunca Mais!”, em conjunto com várias outras ONGs. O projeto acontecia para lembrar da chacina da Candelária, episódio brutal da história do Rio de Janeiro no qual seis menores e dois maiores de idade foram assassinados a tiros enquanto dormiam, além de várias outras crianças e adolescentes negros terem sido feridos no ataque, que ocorreu dia 23 de julho de 1993, em frente à igreja da Candelária. A ação desenvolvida nesse evento era uma manifestação em forma de passeata, em que a demanda era por melhores políticas de segurança pública e pelo fim da violência contra o povo preto e pobre, que são os mais atingidos nesse cenário. E o interesse do circo em promover esse evento era justamente porque grande parte dos alunos da lona constituíam essa população, então o objetivo era nos ensinar a lutar pelos nossos direitos, mostrar que nós temos força e voz.

O trajeto dessa manifestação partia da igreja da Candelária, seguindo toda a avenida Rio Branco e se encerrava na Cinelândia, bem perto do Theatro Municipal.

Em 2018, eu e meus irmãos participamos desse evento e esse será um dia que dificilmente poderei esquecer. Foi a primeira vez que eu andei pelo Centro do Rio e fico feliz que tenha sido justamente em uma ocasião de valor tão importante quanto essa. Eu me lembro vividamente de ficar encantada com as cores, as construções e, principalmente, com a energia que envolvia o nosso protesto. Estávamos fechando a avenida, gritando “Candelária Nunca Mais!” e exibindo cartazes com diversas frases de provocação.

A trupe do circo liderava o grupo, andando na frente enquanto performava uma dança contemporânea que representava a morte dos meninos.  A coreografia se repetia várias e várias vezes, como se simbolizasse uma situação cotidiana. Era como se perguntasse: “Quantas vezes essa tragédia precisa acontecer para que cause comoção?”, e todos que assistiam em volta conseguiam captar essa mensagem, por ser escancarada, crua. A mensagem era muito forte, muito clara.

Logo depois deles, vinham vários alunos carregando cartazes, alguns com nomes dos garotos, nomes de jovens pretos e pobres que tiveram suas vidas interrompidas pela violência. E, mais atrás, vinham alunos montados em pernas de pau (eu era uma dessas) e também carregando cartazes. O conjunto do que era apresentado ali, como um todo, era extremamente  emocionante. Olhar em volta e ver todos aqueles jovens, reunidos, mostrando sua arte e a usando para lutar contra a violência. Nem mesmo o calor escaldante que fazia naquele dia, refletido naquele asfalto, nada parecia acabar com a vontade que nós tínhamos de mostrar quem nós somos.  O momento em que eu olhei em volta e percebi o meio  em que eu estava, percebi o peso do que eu estava fazendo ali, esse foi um momento que ficará marcado em mim para sempre. O trajeto se encerrou, como eu disse antes, próximo ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro e aquela construção, impecável, com o letreiro todo em ouro, foi uma visão de tirar o fôlego. Meu irmão mais velho, pessoa que acabou me incentivando a começar a frequentar o circo, fazia parte da trupe nessa época. Ele estava lá apresentando a coreografia e eu perguntei a ele como foi fazer parte daquele momento. Nas palavras dele: “Eu senti o peso da responsabilidade. Porque a gente estava lidando com um assunto muito sério, muito importante e também porque era um evento que acontecia todo ano na ONG, então era uma ocasião que todos levavam muito a sério. Principalmente a que eu participei, que marcava os 25 anos da tragédia, então o evento parecia maior ainda. Também tinha o fato de que eram muitas instituições envolvidas, não só o “Se essa rua”, como várias outras ONGs envolvidas com crianças, todas marcando presença, exatamente por se tratar de um acontecimento que acabou com a vida de crianças. E o circo estava lá representando que as crianças têm direito a brincar, a se divertir sem ter medo de sofrer qualquer violência, por isso mostrávamos nossas artes circenses. A comoção de todas aquelas pessoas tornou o evento muito bonito.”

Acervo pessoal (irmão da autora)
Acervo pessoal (cunhado da autora)

“Minha memória mais marcante desse dia foi quando nós, da trupe, realizamos o número final do nosso espetáculo. Quando chegamos ao fim do trajeto, na Praça perto do Theatro Municipal, nós realizamos a chamada “morte contemporânea”, que era o encerramento da dança que apresentamos ao longo da passeata. Entre várias cenas, eu interpretei um menino de rua que passava fome, passava frio, era ignorado por todos e chutado por pessoas maldosas. Quando estamos interpretando, nós tentamos nos colocar no lugar de nossos personagens, até para que a atuação fique mais convincente, então foi um sentimento pesado me imaginar naquela cena. Eu parei e pensei “nossa, imagina se eu passasse por isso de verdade”. E eu nunca passei, não consigo imaginar o quanto deve ser ruim. Participar deste projeto foi uma experiência muito marcante para mim, em todos os sentidos.”

Além de todas as emoções fortes, também foi uma experiência divertida porque pudemos parar para descansar, comer um pouco, tirar fotos naquele cenário lindo e ficar apenas papeando por um tempo. Nesse momento que estávamos relaxando, eu e mais algumas pessoas do grupo ficamos treinando malabarismo/equilíbrios e outras artes circenses, e acabamos sendo gravados por uma equipe de televisão que noticiava sobre o evento que nós estávamos promovendo. Até hoje, se pesquisar no YouTube, é possível achar a matéria que foi exibida em rede nacional. E eu apareci! Apareço fazendo malabarismo. Muito chique, né?

O circo, para mim, é um dos espaços socioculturais mais importantes de São João de Meriti, e eu agradeço e valorizo muito o tempo em que fiz parte da lona.

Acervo pessoal (cunhado da autora)

Referências

Texto:

seessarua.ong.br/circo-escola-benjamim-de-oliveira/

Dynho Moura, educador do circo escola, artista circense.

Acervo pessoal (memórias)

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