Cauim

Além de serem os guerreiros mais temidos da costa, os tupinambás da Guanabara eram reconhecidos como grandes festeiros, cantores, dançarinos e consumidores de cauim. As cerimônias festivas, danças e cantos eram frequentes. Eles conheciam diversos instrumentos musicais, como os maracás, — chocalhos feitos de cabaças, sementes ou pedras, além de flautas, tambores, pífanos, apitos. Usavam uma espécie de tornozeleira com guizos, ritmando os passos das danças com as músicas. Gabriel Soares de Sousa, cronista português do século XVI que era senhor de engenho da Bahia, ressaltou a fama que os tupinambás do Rio de Janeiro construíram notabilizando-se, segundo a avaliação deste, como os melhores dançarinos e músicos, entre todas as tribos tupis da costa brasileira.

Tupinambás confeccionando os guizos de tornozelo e tocando maracá. Da obra de André Thevet (1516-1590). 

Para as festas, eles tinham uma bebida sagrada, religiosa e cerimonial, que era condição primeira para a realização de tais eventos comemorativos. O cauim era um tipo de licor alcoólico muito apreciado pelos indígenas. Expedições guerreiras e cerimônias especiais eram programadas para a época da colheita das raízes e dos frutos com os quais fabricavam a bebida, muito aguardada. Quando os primeiros europeus chegaram às suas aldeias, foram recebidos com cauim, oferecido como cortesia pelos nativos.

Representação da festa do cauim, que percorria as malocas da aldeia. No detalhe à esq., um indígena agachado vomita num recipiente. Da obra de André Thevet.

Uma das mais interessantes representações dos ancestrais das terras do Rio de Janeiro era serem grandes fabricantes e apreciadores de uma bebida alcoólica totalmente original e adaptada às condições materiais disponíveis. Diversas cerimônias de transição social na vida de um tupinambá eram regadas a cauim: o nascimento de uma criança, a puberdade das meninas, a furação dos lábios dos meninos, as solenidades do antes e do pós-guerra, os rituais religiosos da lembrança dos antepassados, a despedida das almas dos mortos, o trabalho coletivo na roça, as assembleias de chefes anciões — em tudo a bebida estava presente, animando e reforçando os laços tribais. 

As etapas da fabricação do caium: preparação, mastigação, cozimento e repasse pelas mulheres aos homens da taba. Da obra de Jean de Léry.

Os tupinambás dessas terras eram beberrões respeitados. Ao observar as festas dos tupinambás da Guanabara, Léry afirma que “nem o alemão, nem o flamengo, nem os soldados, nem o suíço; quer dizer, nenhum desses povos da França, que se dedicam tanto ao beber, vencerá os americanos nesta arte”. Consumido morno, o cauim era antes de tudo uma bebida sagrada, destinada somente aos adultos pelas regras tribais. Crianças e jovens eram proibidos de sorver sequer uma gota do líquido. Mesmo os homens só passavam a consumir oficialmente o cauim após o casamento, o que costumava acontecer depois dos 25 anos de idade.

A bebida era extraída de diferentes plantas, sendo a mais apreciada feita do mesmo aipim que comemos hoje. Também podia ser feita a partir de: milho nativo, caju, mandioca, abacaxi, ananás, mangaba, banana, jabuticaba, batata e jenipapo. É provável que cada tipo de cauim fosse associado a uma festa, cerimônia ou ação específica. Como antes das partidas das expedições guerreiras, quando tomavam um cauim “especial”. 

Apenas as mulheres podiam participar do demorado processo de fabricação do “vinho” tupinambá. Pedaços da matéria-prima eram fervidos até ficarem bem cozidos. Depois as mulheres e meninas se reuniam ao redor da panela, mastigavam bem e devolviam as porções em um segundo pote aquecido em fogo baixo. Após um tempo fermentando com as enzimas deixadas pela saliva das mulheres, a pasta resultante era novamente levada ao fogo e remexida até cozinhar. A bebida era opaca e densa, com sedimentos como o vinho, tinha gosto de leite azedo e podia ser misturada com pedaços de frutas.

Como as propriedades alcoólicas inebriantes do cauim dependiam exclusivamente da mastigação, esse processo se revestia de significação mística aos olhos dos tupinambás. As mulheres que tomavam parte na mastigação deveriam guardar por algum tempo sua castidade. As moças mais bonitas da tribo eram as mais incentivadas a participar da fabricação do cauim. Quanto mais lindas e puras fossem as mulheres a serviço do cauim, melhor e mais sagrado seria. O homem que se intrometesse nesse serviço caía no ridículo, poderia arruinar o preparo e tirar a virtude da bebida.

Na véspera do dia marcado para a festa, os convidados de outras tabas entravam na aldeia ornados de penas dançando e cantando. Com os maracás em punho, rodeavam as malocas entoando seus cânticos, pulando e dançando por toda a noite sem cessar. No dia seguinte, a festa começava para valer. Os anfitriões da maloca onde estava o cauim percorriam o resto da aldeia, passando pelas casas, convidando os vizinhos a beber com eles.

As mulheres ficavam a postos para servir aos convivas que, aos poucos, iam lotando o salão. Dançando cada um à sua maneira, eles são servidos à medida que se aproximam das moças responsáveis pela distribuição. As mulheres colocavam os potes em cima de fogo baixo para manter a bebida morna. Os homens eram servidos enquanto dançavam e deviam esvaziar as tigelas em único gole. As mulheres procuravam bebericar o que sobrava, saboreando o que restava, para não deixar nem uma gota de cauim na tigela. 

Hans Staden, 1592 com ilustrações de Theodor De Bry. Ritual tupinambá. 

A felicidade aumentava à medida que mais cuias eram esvaziadas, sobretudo se o sabor daquela safra era aprovado. Improvisavam canções enquanto rodeavam a maloca remexendo com seus maracás e batendo firme os pés no chão: “Ó vinho, ó, bom vinho! Jamais existiu outro igual! Ó vinho, ó, bom vinho! Vamos beber dele à vontade. Ó vinho, ó, bom vinho! Ó bebida que não dá preguiça!”.

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