Hanseníase: um estigma social antigo

Na Idade Média, vitiligo, psoríase, escorbuto, hanseníase, entre outras doenças dermatológicas, eram indistintamente associadas ao termo em latim leprae. Seu sentido estava ligado tanto ao vocábulo árabe al-judhâm, referente à elefantíase grega, morfeia, como ao hebraico tsara’ath encontrado na Torá e na Bíblia com o sentido de castigo divino. Seus sintomas dificilmente passavam despercebidos, pois manifestam-se na pele, à vista de todos. Mas não se tratava apenas de uma doença do corpo. As chagas eram consideradas sintomas da corrupção moral de seu portador. 

Trazida por colonizadores e escravizados para a América portuguesa, no século XVII, a doença, com todos os seus estigmas, começou a ser mencionada nas correspondências trocadas entre o rei de Portugal, membros da Câmara do Rio de Janeiro e governadores da capitania. Ao longo do século XVIII, o termo passou a ser identificado a um conjunto específico de sintomas, como o chamado “aspecto leonino” e a insensibilidade.

Os lázaros ou leprosos – como eram então conhecidos os portadores da hanseníase – compunham a paisagem urbana da cidade. Até meados do século XIX, quando os espaços físicos do Rio de Janeiro não eram ainda completamente segregados, eles compartilhavam as ruas com ambulantes, escravizados e pobres.

Na primeira metade do século XVIII, o governador e capitão-general do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, futuro conde Bobadella, iniciou, por demanda de dom João V, a construção de um lazareto. A empreitada resumiu-se à construção de pequenas casas que abrigariam aproximadamente 52 leprosos ao pé do morro de São Cristóvão, um lugar remoto e alheio à circulação das pessoas. Aos poucos, a doença passou a ser considerada uma ameaça à saúde pública.

Aspecto geral de uma das vilas de casas da colônia de Curupatí, 1972. “SOS do cemitério dos vivos de Jacarepaguá. São 900 ofendidos pelo descaso e horror de todos.” Arquivo Nacional

Após a morte de Gomes Freire, em 1763, um dos membros do triunvirato que assumiu o governo da capitania, o bispo dom Antônio do Desterro, repassou ao Santíssimo Sacramento da Candelária a assistência aos leprosos reunidos em São Cristóvão. Um antigo monastério jesuíta foi reformado e, em 1766, passou a abrigar o Hospital dos Lázaros. Até 1929, quando o Hospital-Colônia Curupaiti, em Jacarepaguá, foi inaugurado, era a única instituição dedicada ao isolamento e tratamento dos portadores da hanseníase, não apenas na capital, mas em todo o Rio de Janeiro. 

Hospital dos Lázaros, Louis-Auguste Moreaux e Pintado por: Abraham-Louis Buvelo, final do séc. XIX. (Coleção Museu Casa Geyer/Museu Imperial)

No alto do principal acesso ao Hospital dos Lázaros foram inscritos os versos do poeta italiano Dante Alighieri: “Deixai aqui toda esperança, vós que entrais”. Os versos causaram indignação no imperador Pedro II. A citação foi retirada sob suas ordens em 1886, e um vitral com a inscrição “Aqui renasce a esperança” passou a decorar o lugar. 

D. Pedro II em visita ao hospital dos Lázaros, 1886; e o vitral com a inscrição “Aqui renasce a esperança” que mandou colocar em substituição ao anterior do Inferno da “Divina Comédia” de Dante. (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz)

A doença passou a ser  cada vez mais dissociada da ideia do pecado – depois da descoberta do bacilo causador, a bactéria Mycobacterium leprae, em 1874 – para ser vinculada ao perigo de contágio. Foi necessário proteger a população sadia e internar, muitas vezes de forma compulsória, pessoas diagnosticadas com hanseníase. Curupaiti tornou-se quase uma pequena cidade: o leprosário era destinado ao isolamento e tratamento do doente; no dispensário ficavam os familiares e demais pessoas que tiveram contato com os pacientes; e para o preventório seguiam as crianças que eram separadas de seus pais, muitas logo ao nascer. 

Hospital Frei Antônio, antigo hospital dos Lázaros, a partir do viaduto do gasômetro, São Cristovão, 2014. (Alexandre Macieira/Tyba)

Entre  2013 e 2016, houve uma queda no número de casos de hanseníase no Rio de Janeiro. Mas, em seguida, o número de casos voltou a aumentar. As ações atualmente são voltadas para o fim do estigma e o diagnóstico precoce, de modo que a impressão causada no poeta Olavo Bilac à vista de um “lázaro” não venha a se repetir: “Só!… No meio da agitação da vida, só, entre os que amam, só entre os que riem, só entre os que choram, só entre todos, insulado pela sua hedionda moléstia, o lázaro vive mais abandonado em plena comunhão social do que se estivesse no ermo absoluto do mais inexplorado areal africano”. 

O Brasil ocupa hoje a triste 2ª posição do mundo entre os países que registram casos novos. 

Este texto foi elaborado pela pesquisadora Marcela Telles Elian de Lima do Projeto República (UFMG)

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