“Como o seu automóvel usado vale uma parte do pagamento de um novo... seu fogão velho também vale dinheiro. O fogão velho é antiestético. Contrasta deploravelmente com os azulejos brilhantes de uma cozinha bem cuidada. Mesmo assim o seu fogão vale dinheiro.” Esta campanha publicitária exprime o empenho da Société Anonyme du Gaz em intensificar algo que já ocorria desde o final do século XIX, em processo lento e gradual: a substituição da lenha e do carvão pelo gás – no processo de cocção de alimentos e no aquecimento. E ademais, para quem já utilizava o gás, a troca por um novo fogão. Nesta fotografia, uma loja onde havia um showroom para a venda de fogões manufaturados pela própria empresa.
Esta fotografia de um fogão danificado – o motivo não está esclarecido na imagem – serve como testemunho do design dos fogões que eram comercializados pela Société Anonyme du Gaz.
Um dos numerosos anúncios de fogões a gás publicados na Revista Light.
Nos anos 1930, o fogão a gás ainda não era uma unanimidade nem mesmo entre as classes dotadas de melhores condições financeiras. Estes anúncios nos mostram as ideias dominantes no meio publicitário (e da sociedade branca, em geral) de então, que atendia a clientes como a Light e a Société Anonyme du Gaz: a mulher preta — retratada de maneira racista e caricata no anúncio — era associada ao atraso, qual seja, o fogareiro a carvão…
… enquanto a mulher branca e de melhores condições econômicas supostamente já manejava o fogão a gás. A cozinheira era comumente associada à mulher preta. Bem sabemos que nas primeiras décadas de nossa República – período que coincide com a implantação dos serviços do conglomerado da Light – as políticas eugenistas, de embranquecimento da população foram intensas, como demonstram nossos historiadores do tema.
Esta imagem mostra a grande novidade: o fogão a gás, em uma aula de culinária oferecida às donas de casa.
Aqui, vê-se o fogão instalado na estação de telefones do Flamengo, à rua Dois de Dezembro. Nele eram preparadas as refeições oferecidas às telefonistas que ali trabalhavam.
Quando a S. A. G. inaugurou a primeira Escola das Cozinheiras, na sua agência à rua Teixeira Soares na Praça da Bandeira, a repercussão foi muito positiva, segundo o registro na Revista Light (abril de 1932). A turma era integrada por “numerosas senhoras residentes no bairro” e como a fotografia publicada atesta, havia um aparente ‘equilíbrio’ étnico. Levando em conta que uma parcela considerável das mulheres dedicava-se às prendas domésticas incluindo a cozinha, torna-se impossível saber quem era, ali, patroa ou cozinheira profissional. Mas é fato que as primeiras filas estavam ocupadas por mulheres pretas, todas vestidas de branco, o que poderia levar à interpretação de que eram todas cozinheiras profissionais. Ou não.
O programa do curso incluía os aspectos gerais da cozinha e de seus utensílios, incluindo a limpeza, o manejo do fogão e do forno, suas técnicas e sua manutenção, a seleção dos distintos alimentos, formas de processamento e de conservação, receitas diversas para uma refeição completa e, ainda, “o asseio da empregada encarregada desses serviços”. E teria havido mudança substancial na cozinha carioca? Novas maneiras de cozinhar, com novos equipamentos, teriam implicado em mudança de hábitos e sabores? Isto, sem nos esquecermos de que a energia elétrica veio a possibilitar a popularização da geladeira, ocasionando outra verdadeira revolução na cozinha e nos hábitos alimentares. Uma coisa é certa: descendentes daquelas mulheres pretas, muitas delas trabalhadoras domésticas, vêm mudando a realidade local, onde o racismo estrutural é mais e mais combatido e a visibilidade de outras comidas é evidente. Hoje, o Rio de Janeiro tem nomes de expressão entre os chefs afrodescentendes que comandam restaurantes admirados, estabelecidos em bairros e comunidades onde a culinária afro-brasileira – aí incluídas a culinária quilombola e a comida votiva de terreiros de candomblé – é cada vez mais disseminada e apreciada.