Cidade Lagoa
A música “Cidade Lagoa”, de Sebastião Fonseca e Cícero Nunes e eternizada na voz de Kid Morengueira, é uma reflexão poética sobre o Rio de Janeiro, particularmente sobre as enchentes e alagamentos que frequentemente assolam a cidade. As inundações, que marcaram o cotidiano da cidade ao longo do século XX, têm suas raízes em uma urbanização ordenada por uma lógica higienista e mercadológica, voltada a especulação do habitar como mercadoria. O resultado é o discurso mais comum de falta de infraestrutura adequada e ocupação de áreas de risco. Mas vale lembrar, que nada disso é falta de planejamento ou ordenamento, mas ao contrário é o próprio planejamento e ordenamento só que uma lógica que não está voltada para o bem viver, mas sim para a renda diferencial dos imóveis. É sobre mercado imobiliário e não sobre viver bem que a cidade, como mercadoria, evolui. Esses fatores, combinados com chuvas intensas, resultaram em alagamentos catastróficos, que afetaram especialmente as regiões mais vulneráveis da cidade. Dizer que é “desordenado” desde o tempo de Kid Morengueira é a base do cinismo do discurso contemporâneo.
No início do século XX, o Rio de Janeiro passou por um processo acelerado de urbanização. A cidade, então capital do Brasil, viu um crescimento rápido e repleto de aterros e canalizações, desde as obras do DNOS (Departamento Nacional de Obras e Saneamento) à reforma Pereira Passos, com grande parte da população, sendo periferizada e dando sequência às suas vulnerabilidades se estabelecendo em áreas de risco, como os morros e as zonas baixas. Esses corpos d’água, além de canalizados em linhas retas, passaram a ser alimentados pelos fluxos superficiais (mais rápidos), dada a crescente impermeabilização do solo por asfalto e cimento. Criamos, assim, uma armadilha histórica, agravando o risco de inundação durante as chuvas intensas.
As inundações ocorrem nas baixadas que circundam os maciços e recebem as descargas hidrológicas de suas encostas. As retilinizações dos canais fluviais só aceleram a chegada desses fluxos às áreas baixas da cidade, junto com os fluxos gerados pela excessiva pavimentação. Por vezes, os eventos de enchentes são acompanhados de deslizamentos, e o fluxo vem carregado de detritos, incluindo blocos rochosos e troncos de árvores. O resultado já é conhecido pelos moradores que tem suas casas inundadas e bens perdidos, quando não, vitimados.
A Praça da Bandeira, como dito na música, é um local recorrente de inundações, desde os tempos longínquos da construção da cidade. Construída sobre os alagados, brejos, mangues na beira de um antigo braço de mar que adentrava da Gamboa até a foz de grandes rios da Zona Norte, a área sempre foi marcada por sua funcionalidade hidrológica como área de inundação. Ali se encontravam as fozes dos Rios Maracanã, Joana, Trapicheiros e Comprido, além das drenagens que vêm do Catumbi, em um grande manguezal conhecido como Saco de São Diogo. Sim, uma área de confluência de drenagens em um sistema alagado, que, segundo a visão urbanística e higienista da época, era fonte de mal cheiro, a qual se atribuía foco de doenças e mosquitos, além de impedir o crescimento da cidade. Desde os tempos imperiais, o Barão de Mauá inicia a construção do Canal do Mangue e já na república, o então prefeito Pereira Passos, finaliza o aterro do Saco de São Diogo e o expande para o Saco de São Cristóvão. Mara transformado em cidade. Não há motivos para não crer que as enchentes iriam continuar. Por mais que a engenharia da época prevê-se corretamente pelos cálculos de vazão, a largura e profundidade dos canais, o que ela não previu, foi toda a pavimentação do resto da bacia de drenagem a montante. A expansão dos bairros da Tijuca, Maracanã, Vila Isabel, Grajaú, Andaraí, Cidade Nova e Catumbi foi marcada pela impermeabilização dos solos das baixadas e das encostas, virando grandes fontes de escoamento superficial durante as chuvas. O escoamento superficial, entre todos os fluxos hidrológicos gerados em um evento chuvoso, é o mais rápido de todos, correndo livre na superfície até os pontos de confluência. O resultado é que cada vez chuvas menores causam enchentes maiores. Ultimamente, alguns prefeitos se aproveitam do discurso de mudança climática para indeterminar os sujeitos e afirmar que as inundações são provocadas por eventos que nunca ocorreram antes. De fato, as chuvas são as mesmas ou, como dito, por vezes, com valores menores, mas causando mais enchentes.
Não escapam, nessa grande área pavimentada, outros pontos de inundação. Desde quase as cabeceiras do Rio Maracanã, logo em seu primeiro contato com os fundos de vale, no Bairro da Usina, a parte da comunidade do Borel situada na planície do rio, sofre com seus transbordamentos. O estrangulamento feito pelas construções sobre o leito maior do rio garantem que as mesmas sejam atingidas nos eventos mais fortes de chuva. Logo a jusante, na área canalizada já próxima à Saenz Pena, a planície central do Rio Maracanã era foco de muitas inundações até a obra do piscinão da Praça Vanhargen. A mesma obra foi realizada na própria Praça da Bandeira, a fim de armazenar os fluxos das enchentes, evitando ou diminuindo as áreas afetadas.
A baixada do Rio Pavuna, com densa ocupação em extensas planícies, apresenta também diversos pontos de inundação, que somados a falta de esgotamento sanitário, fazem dos eventos de enchentes, uma verdadeira disseminação de doenças de veiculação hídrica. O mesmo ocorre com seus afluentes, Irajá e Acari, que, subsumidos na paisagem densamente ocupada sob a forma de valões, retomam seus leitos maiores no momento de chuvas fortes. Os bairros de Acari, Fazenda Botafogo, Anchieta, Pavuna e Irajá são sempre os mais atingidos.
Na Zona Sul, outro ponto clássico de inundações é a antiga área dos brejos no sopé da Serra da Carioca, onde descem o Rio dos Macacos e o Rio Rainha, respectivamente nos Bairros do Jardim Botânico e Gávea. O imenso aterro do Jockey Clube do Brasil, com seu longo muro, garante a inundação da Rua Jardim Botânico e Praça Santos Dumont. Em Botafogo, os Rios Bengo e Banana Podre, sumidos sob o asfalto em galerias que não suportam o fluxo pluvial, também, garantem as enchentes do bairro nas ruas Voluntários da Pátria e São Clemente. No Catete, por sua condição, também de baixada aterrada, a rua principal do bairro, a Rua do Catete, frequentemente fica alagada, causando transtornos para motoristas, lojistas e moradores.
Indo para o Zona Oeste, as baixadas se ampliam e junto com elas a urbanização pavimenta mais áreas para enchentes. O Problema se agrava a medida que a manta asfáltica e aterros toma conta dos ambientes pré-existentes. Os bairros de Jacarepaguá, Vargens, Realengo, Bangu, Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz são frequentemente palco das maiores enchentes cariocas contemporâneas. A região de Jacarepaguá possui várias lagoas e áreas alagadiças, que, com a impermeabilização do solo, passaram a ser cada vez mais propensas a inundações. A drenagem da região nunca foi eficiente o suficiente para suportar o aumento da urbanização, e as chuvas fortes causam grandes alagamentos, desde a década de 1990.
A expansão recente dos bairros de Guaratiba, sobretudo o caso, já clássico, de Jardim Maravilha, expressa o formato de urbanização danosa e custosa que assombra o modelo de cidade que construímos. Uma imensa área do baixo curso do Rio Cabuçu-Piraquê de solos hidromórficos foi escolhida como frente da expansão residencial da Zona Oeste, construindo uma situação de risco, hoje, de difícil resolução. O problema tão recorrente culminou em 2019 com a CPI das Enchentes, criada na Câmara dos Vereadores. Segundo o relatório, a oferta de serviços voltados à prevenção de desastres revela um padrão de desigualdade evidente entre os territórios da cidade. Toda a extensa área que envolve o Maciço da Pedra Branca — parte fundamental da bacia hidrográfica ligada à baía de Sepetiba — foi completamente desconsiderada pelos sistemas de alerta e alarme. No que se refere ao saneamento, o contraste é gritante: na AP-5, que abrange bairros como Bangu, Realengo, Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz, apenas 33,28% do esgoto é de fato coletado e tratado, revelando a precariedade estrutural que persiste nessa porção da cidade.
Embora o Rio de Janeiro tenha investido em algumas melhorias na infraestrutura de drenagem nas últimas décadas, as enchentes continuam sendo um problema recorrente. A ocupação no modelo que é e a impermeabilização do solo permanecem como desafios constantes para o município. Como na música de Kid Morengueira, a cidade parece, por vezes, ser uma “lagoa” onde as águas, ao invés de ser controladas, tomam as ruas e modificam a vida da população. A memória desses alagamentos permanece viva nas comunidades afetadas, lembrando da necessidade urgente de um planejamento urbano mais responsável e voltado para o cidadão.

Praça da Bandeira em 1940 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ).

Enchente no bairro do Jardim Botânico em 2019 https://www.pbs.org/newshour/world/heavy-rains-cause-deadly-floods-in-rio-de-janeiro

Túneis Zuzu Angel interditados por deslizamentos em fevereiro de 1996, Foto Marcia Foletto / Agência O GLOBO

Enchente de 1966 nos arredores do Jardim Botânico, acervo Rede Globo. https://tvhistoria.com.br/como-enchente-rio-mudou-historia-rede-globo/

Frame RJ TV do sobrevoo da enchente em Jardim Maravilha, Guaratiba, maio de 2022