A chaga histórica da “sifilização”
Alguns dos primeiros registros de manifestações clínicas da sífilis, como as lesões cutâneas, ósseas, cardiovasculares e neurológicas, datam dos últimos anos do século XV, já como uma epidemia na Europa. No entanto, estudos mais recentes reconheceram, em fósseis humanos americanos e asiáticos anteriores às grandes navegações europeias, deformações características da enfermidade, de modo que a sua origem permanece incerta. Além disso, até o século XIX, a sífilis era facilmente confundida com outras doenças, como a lepra, a sarna, a micose e a leishmaniose, já que seu diagnóstico permaneceu desconhecido até a criação da sifilografia, especialidade médica a ela dedicada.
Em 1798, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro organizou um inquérito para descobrir quais eram as doenças endêmicas e epidêmicas mais comuns na então capital federal. Na ocasião, dois dos três especialistas ouvidos apresentavam as chamadas “doenças venéreas” como as de maior incidência e atribuíram este resultado a um preconceito muito comum à época: a “imoralidade reinante na cidade”. Um deles, em particular, chegou mesmo a considerar o ócio e a riqueza adquiridos pelo trabalho escravo como os principais responsáveis pela origem dessa depravação dos costumes.
Embora de abordagem distinta, este mesmo raciocínio de fundo moralista acabou se consagrando anos mais tarde, com o clássico Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. De acordo com o sociólogo pernambucano, a sífilis, uma das mais conhecidas infecções sexualmente transmissíveis, provocada pela bactéria Treponima pallidum, teria chegado ao Brasil com a “miscigenação” colonizadora. Nesse sentido, Freyre escreveria que, no Brasil, “a civilização e a sifilização” teriam andado juntas; ou, mais do que isso: nós teríamos sido “sifilizados” antes de sermos “civilizados”.
No Brasil, a sifilografia – um ramo da biomedicina – se institucionalizou entre 1880 e 1920, tendo o Rio de Janeiro como centro das principais cátedras, sociedades e periódicos especializados. Por um lado, iniciativas como a realização do 1º Congresso Sul-Americano de Dermatologia e Sifilografia, sediado no Rio de Janeiro em 1918, revelavam o estágio de desenvolvimento e estímulo às pesquisas na área. Por outro, elas evidenciavam a latente preocupação com o número de infectados, não apenas na capital federal, como em vários outros centros urbanos do país.
Desde o início do século XX, a sociedade já não depende mais de tratamentos para sífilis envolvendo sangrias, banhos, fricções com mercúrio, ou ainda confissões, purgações e jejuns. Em 1928, Alexander Fleming descobriu a penicilina, tornando o combate à sífilis mais eficaz. Além disso, todo o investimento científico fez com que a sífilis deixasse de ser vista como doença pecaminosa, leitura predominante até o século XIX; ou como uma loucura, uma perversão sexual e ainda uma facilitadora de crimes e imoralidade, interpretações recorrentes até meados do século XX. Ainda assim, a doença parece estar longe de ser controlada. Em 2019, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) publicou um artigo revelando que, desde 2016, as autoridades sanitárias do país reconhecem a existência de uma epidemia de sífilis.
Este texto foi elaborado pelos pesquisadores Juliana Soares e Marcus Lage do Projeto República (UFMG)