A produção do espaço que habitamos é fruto de diversos processos acumulados ao longo do tempo em nossa materialidade e relações sociais. O espaço é composto do conjunto indissociável entre a área ocupada (formada por relevos, ecossistemas, dinâmicas atmosféricas) e os processos de ocupação (relativos às relações de poder, de cultura, políticas, sociais e econômicas) – uma amálgama que registra, grava, grafa no chão a sua marca – única e exclusiva – que chamamos comumente de paisagem ou, mais profundamente, de geografia – o grafismo na terra. Essa paisagem é feita de coisas visíveis e, também, de imaterialidades que resultam das relações sociais e envolvem poder, valor econômico, interesses políticos e culturais.

 

Geodiversidade, entre muitas definições, pode ser entendida como a diversidade de feições e processos geológicos e geomorfológicos que interagem com a cultura modelando a paisagem. O Rio de Janeiro não escapa a esse processo, expressando muito bem em sua geografia, o entremeado de edificações sobre maciços rochosos, baixadas litorâneas e  as diferentes formas de se viver em espaços tão distintos.

Cada vale escavado por um rio ou cada baixada, com praias e restingas, aninham e acomodam partes da nossa cidade e influenciam nossas vidas. As formações rochosas e suas dinâmicas interagem intensamente com o cotidiano urbano, seja com as cachoeiras que refrescam seus frequentadores ou nos deslizamentos de terra e inundações que nos afligem nos verões quentes e chuvosos. Não é uma tarefa fácil habitar o Rio de Janeiro, uma cidade onde o relevo não é apenas cenário — é protagonista da vida que pulsa entre montanhas, vales, praias e baixadas.

 

Desde a sua fundação, a cidade foi se configurando sobre esse terreno acidentado e a influência dessas dimensões físicas estão presentes, desenhando o palco dos acontecimentos e moldando sua própria construção. É nesse relevo único que inscrevemos a nossa presença, desviando rios, aterrando brejos, praias e mangues, subindo aos picos e descendo ao subsolo. Fomos e somos contundentes na construção do nosso próprio espaço de viver.

 

A história geológica do Rio de Janeiro remonta aos movimentos tectônicos muito antigos em colisões continentais que forjaram, em alta temperatura e pressão, as nossas rochas. Depois, a separação dos continentes e a abertura do Oceano Atlântico alterou completamente o relevo e elevou nossos pães de açúcar, morros corcovados, picos e serras. As chuvas tropicais, tempestades e intempéries trataram de fustigar e destruir essas formações, ao longo dos milhões de anos de evolução desta paisagem. Vales foram escavados, sedimentos distribuídos nas áreas baixas, rios, brejos e baías se formaram. Florestas e ecossistemas associados ocuparam seus habitats com exuberante flora e abundante fauna. Os humanos registraram seus primeiros vestígios na região do Rio de Janeiro e Guanabara em torno de 8.000 anos atrás e estão associadas ao aquecimento global que o planeta vivenciou com o fim da última glaciação. A tropicalização desses ambientes atraiu hordas humanas que chegaram pela Amazônia e ocuparam o recôncavo da Guanabara dada a sua abundância de recursos: mangues, brejos, peixes, crustáceos, água doce de vários rios que chegavam na baía. Depois desses povos pré-históricos vieram os Tupinambás, Tamoios e demais nações indígenas que ocuparam nosso território. Mas esse relato histórico já está na galeria Rio antes do Rio e aqui vamos nos ocupar da dimensão espacial dos fatos pensando a geografia desses processos.

Curadoria: Marcelo Motta de FreitasRevisão e pesquisa complementar: Fotografias: Renato Oliveira

A geografia do município do Rio de Janeiro é, por si só, um exercício de leitura profunda entre a matéria da terra e os processos que nela se inscrevem. A cidade se desdobra entre o relevo estruturado sobre antigas rochas e as planícies sedimentares mais recentes, compondo uma paisagem que se amalgama aos processos históricos e sociais. Três grandes maciços rochosos — Tijuca, Pedra Branca e Gericinó-Mendanha — sustentam, como estruturas geológicas, a narrativa espacial da cidade. São corpos rochosos que resistem ao tempo e, ao mesmo tempo, moldam, limitam e interagem com o espaço habitado, o fluxo das águas e os caminhos humanos.

 

O Maciço da Tijuca, encravado no coração da cidade, foi o primeiro a ser percebido e incorporado à dinâmica de construção da cidade. A própria fundação da cidade ocorre em sua península mais extrema, a Leste, onde situa-se o Pão de Açúcar, feição símbolo da cidade. Desde o início da colonização é esse maciço que vai nominar as referências espaciais da cidade. A porção ao sul do Maciço da Tijuca denominou-se Zona Sul, ao norte, Zona Norte e a oeste dele, a Zona Oeste. Culturalmente, a divisão dessas zonas não segue uma divisão geométrica, tampouco geodésica.

 

É nesse mesmo maciço que se erguem feições icônicas, apropriadas como símbolos cariocas, como o Corcovado, Dois Irmãos e a Pedra da Gávea, que já foram lidas como signos, portais divinos e mirantes da cidade. Com seu relevo acidentado e revestido pela Mata Atlântica, ele opera como um divisor e regulador: separa zonas, modula ventos, distribui chuvas e impõe seus próprios limites à expansão urbana. O Parque Nacional da Tijuca — que o cobre em grande parte — é testemunha dessa complexa troca entre destruição e regeneração das paisagens.

 

Na porção oeste do município, o Maciço da Pedra Branca se impõe em extensão e altitude. Seu ponto culminante ultrapassa os mil metros, sendo o mais alto da cidade. Trata-se de um maciço florestado, onde está a maior floresta urbana, embora pressionada pelas bordas da cidade que, pra lá avança. Ali, o Parque Estadual da Pedra Branca preserva nascentes, florestas e encostas, funcionando como fonte, reservatório e memória.

 

Já o Maciço de Gericinó-Mendanha, bordejando o limite norte do município, participa igualmente da trama morfológica da cidade, separando-a dos municípios da baixada fluminense. Acomoda em seu sopé, os bairros de Bangu, Santíssimo e Campo Grande, e a condição periurbana da expansão da cidade sobre resquícios das últimas áreas agrícolas do município. É um território em tensão — entre o que se preserva e o que se perde — onde as suas serras internas, que acomodam uma antiga câmara vulcânica, assistem à rápida transformação do entorno.

 

Espalhadas entre esses grandes volumes rochosos, diversas serras menores conotam pequenas dobras do terreno. Algumas isoladas, outras encadeadas, elas ajudam a compor o relevo fragmentado da cidade, marcado por rupturas e encaixes entre altos e baixos, que separam bairros das áreas de planícies. Aí estão, Inhoaíba, Paciência, Capoeira Grande desde a porção oeste, até a Serrinha e a Serra da Misericórdia em direção leste.

 

Rodeando todas essas elevações, as planícies costeiras — como as de Jacarepaguá, Sepetiba e Inhaúma — se estendem como molduras mais recentes, onde se depositaram os sedimentos quaternários que formam as baixadas. Sobre essas, a ocupação mais intensa nos séculos XX e XXI substituiu manguezais, lagoas e restingas por avenidas, prédios e canais retificados. Mas suas dinâmicas originais — de drenagem, de refúgio e de transição — continuam atuando, às vezes se manifestando em enchentes, outras em exuberância biológica.

 

A paisagem do Rio não se limita a seus cartões-postais. Ela é a expressão viva de uma geodiversidade que pulsa e que se entrelaça com a cultura e a história de seus habitantes. Cada morro, cada vale, cada baixada registra uma forma específica de vida e resistência. É essa geografia — singular, tensionada, marcada por contrastes — que estrutura a cidade e seus modos de existir. A montanha encontra o mar, o urbano se inscreve na rocha, e o cotidiano se dá entre escarpas, planícies e memórias.

Pensar a cidade a partir de suas águas é assumir que, por baixo do concreto e das infraestruturas, pulsa uma outra geografia – invisibilizada, mas ainda viva. O Rio de Janeiro é uma cidade feita de águas — visíveis ou ocultas, fortes ou suaves — que escorrem pelas encostas, atravessam vales e desenham o relevo antes de alagarem as planícies e chegarem ao mar. Os rios da cidade, muitos dos quais esquecidos sob o asfalto ou aprisionados em canalizações, são testemunhas do funcionamento hídrico do sítio urbano sobre o qual a cidade cresceu. O “rio de asfalto e gente entorna pelas ladeiras, entope o meio fio” construindo uma cidade sobre o fluxo de águas que moldavam caminhos próprios, fertilizava baixadas e diluíam a salinidade dos corpos d’água represados em nosso litoral. Os rios cariocas nascem nos maciços montanhosos da Tijuca, Pedra Branca, Gericinó-Mendanha. Cristalinos e sem poluição no meio das florestas protegidas que mantêm umidade e alimentam nossos mananciais, são ainda pequenos olhos d’água que brotam das rochas e descem em forma de córregos, riachos e rios maiores.

 

No Maciço da Tijuca, por exemplo, as cachoeiras são feições refrescantes e de apreciação há séculos. A Cascatinha Taunay, as Cachoeiras do Horto, a Cascata Cristalina são lugares de refúgio em meio a massa de concreto da cidade construída, onde o som da queda d’água reencena uma geografia que insiste em ser ouvida. Essas águas também alimentam rios como o Maracanã, o Trapicheiros, o Joana e tantos outros que, embora soterrados em boa parte de seus cursos, ainda seguem vivos, escorrendo por sob a cidade, como veias de um corpo urbano que se recusa a secar.

 

Na zona oeste, o Maciço da Pedra Branca dá origem a rios como o Grande, o Camorim e o Anil, que percorrem planícies alagáveis antes de desaguar nas lagoas de Jacarepaguá e da Tijuca. São cursos d’água que testemunham as disputas territoriais do “sertão carioca” dos engenhos, da agricultura e da intensa urbanização. Todos respondem aos tempos de chuva, transbordando e lembrando que a cidade, apesar de tudo, ainda está inserida em bacias hidrográficas tropicais. Em Gericinó-Mendanha os rios menores escondem lindas cachoeiras em territórios, historicamente, mais afastados da cidade, e, certamente, por isso, marcados por contrastes. O uso menos intenso de suas encostas, guardou excelentes remanescentes florestais, hoje protegidos, mas logo em seu sopé as águas encontram baixadas que enfrentam a expansão das periferias urbanas, suas histórias e desafios sociais.

 

Abrem-se os vales e os fluxos hidrológicos chegam às baixadas, serpenteando os rios ou criando extensos alagados. Porém, ao abandonarem os trechos encachoeirados dentro dos maciços, encontram-se com a cidade, que resolveu no início do século XX, eliminar as tantas curvas que seus meandros desenhavam pelas baixadas, substituindo-os por canais retilinizados, com o propósito de enxugar rapidamente as áreas baixas, visadas para ocupação.

 

As bacias hidrográficas da cidade, portanto, se espalham como redes de memória. Muitas foram retificadas, canalizadas, drenadas, esquecidas. Outras resistem. Assim, quase todos os rios do município, exceto aqueles dentro de áreas protegidas pela legislação, perderam suas curvas e seguem retos em seus baixo-cursos e, naturalmente (gosto do uso dessa palavra para artificializações), pela falta de saneamento, encontram-se altamente poluídos.

 

As cachoeiras e rios do Rio de Janeiro não são apenas acidentes naturais: são elementos estruturantes da paisagem e da história. São lugares de persistência ecológica e de memória social. Em suas margens se formaram comunidades, se traçaram limites, se definiram trajetórias de expansão urbana. Em seus fluxos, ainda hoje, correm as memórias ancestrais, funcionalidades hidrológicas e o comportamento vivo do clima tropical. Rios que, em outros tempos, foram fontes de vida, lazer, navegação, agricultura. Hoje, carregam lixo e esgoto, mas também possibilidades de reexistência. Projetos de revitalização e educação ambiental tentam devolver sentido e presença a esses corpos líquidos invisibilizados.

 

Pensar os rios e cachoeiras do Rio de Janeiro é retomar o elo entre o urbano atual e o funcionamento das paisagens antes da ocupação, entre o visível e o oculto, entre o concreto e o fluido. É entender que a cidade não é só construída sobre a terra firme, mas também sobre fluxos — de água, de vida e de tempo. É redescobrir, enfim, a geografia líquida que habita sob nossos pés, escorre por nossos morros, e que insiste, apesar de tudo, em nos lembrar que ainda resistem paisagens a perceber.

Habitar o litoral é viver na borda, no limite entre terra e mar, onde a troca de elementos esculpe, em um árduo e contínuo trabalho, o contorno de pontas rochosas, cordões de areia e elevações subaquáticas que se revelam em forma de ilhas sobre a linha do mar. A vida vem em ondas garantindo a identidade da cidade maravilhosa, cuja dinâmica costeira entrega uma geografia que pulsa, erode, renova-se e dá cor à pele carioca. O Rio de Janeiro nasce por causa do Atlântico, com o corpo virado para o horizonte salgado. Sua existência é costeira, sua territorialidade marítima: é cidade de enseadas, baías, restingas, costões e ilhas que imprimem uma moldura única, onde a Mata é Atlântica e a Serra é do mar. É paisagem como condição de vida.

 

A cidade é enfeitada de praias que não são apenas cartões-postais, mas territórios vividos, disputados, sentidos. A areia é espaço de lazer, mas também de trabalho, de inclusão, de exclusão, de cultura dinâmica. Cada praia da cidade marca a história, registra momentos, contam acontecimentos. “Do Leme ao Pontal”, Copacabana, Ipanema, Barra da Tijuca e Recreio são arenas visíveis onde o espetáculo do urbano se exibe com suas contradições. Já as mais escondidas — Prainha, Grumari, Joatinga — guardam silêncios, resistências e outras formas de se estar com o mar. Cada faixa de areia é também uma faixa de história, marcada por ocupações humanas diversas: indígenas, pescadores, veranistas, turistas, comerciantes, moradores de rua. Do Mate com Limão ao Biscoito Globo, da ponta do Calabouço ao Piscinão, Saudades, Leme e naufrágios são grãos de areia dentro desse oceano de complexidade que a mais bela cidade costeira do mundo pode conter.

 

Nas pontas de pedra que desenham o contorno da costa, os costões rochosos são monumentos geológicos esculpidos há milhões de anos por pressões tectônicas em contato com o impacto incessante das ondas. São áreas de transição ecológica entre o terrestre e o marinho, onde espécies vegetais e animais adaptam-se ao sol e ao sal de forma intensa e frágil. São também espaços onde o humano deixa rastros: trilhas abertas, pichações, antenas, mirantes, vestígios de fé, selfies e lixo. O encontro entre a rocha e o mar ali não é apenas físico — é um choque de tempos, de ritmos, de presenças e de ausências.

 

As ilhas, por sua vez, pontas de elevações de terra cercadas de marés e ondas por todos os lados, assistem a uma certa distância o corre-corre de carros, pedestres, bicicletas e patinetes do cotidiano urbano. As ilhas são também, pela história, ou melhor, pela geografia, geopolíticas: territórios militares, industriais, milicianos e traficantes. Algumas mais próximas e historicamente usadas, como a ilha da Laje ou a das Cobras, são marcadas por usos militares e simbólicos. Outras são abrigo de fauna marinha e guardam vegetações costeiras que resistiram historicamente e são excepcionais refúgios de rotas migratórias transoceânicas. Algumas foram tombadas pela memória, como a ilha Fiscal, onde se realizou o último baile do Império. Outras seguem intocadas, flutuando sobre o tempo da cidade. Como pedaços fragmentados do continente, são na verdade pontas sobressalientes do afogamento causado pela transgressão marinha que avançou sobre nossa costa. São partes integrantes da paisagem carioca, desde a Baía da Guanabara até a Baía de Sepetiba.

 

As praias foram alvo da urbanização, consagrando o uso e o banho de mar como imprescindíveis à existência do carioca. No entanto, a ocupação sem limites   comprometeu os ecossistemas sobre as restingas, brejos e mangues que garantiam biodiversidade, equilíbrio hídrico e climático. A erosão dinâmica dessas áreas, expõe a falta de compreensão dos processos de ocupação que avançaram sobre a zona de amortecimento entre continente e mar com suas avenidas, prédios e casas. As ilhas, os costões e as praias já sentem a pressão de um tempo em que os extremos incomodam.

 

É preciso ler essa orla não como limite, mas como uma linha viva que conecta montanhas e vales ao oceano. Uma borda que não separa, mas integra dinâmicas, como uma pele que troca com o meio externo. Nesse caso, uma pele bronzeada pelo sol, ressecada pelo sal e impactada pelas ondas de bom tempo e “ressacas” das tempestades tropicais. É onde as rochas se desmancham em sal, a areia dança com as ondas e onde o humano pode, talvez, reaprender.

A paisagem do Rio de Janeiro, essa amalgama de montanhas, vales, praias e baías, não é a mesma de antes. Não porque o tempo tenha apagado suas marcas, mas porque o humano, com seus processos de construção e destruição, reescreveu as linhas do horizonte. Em cada metro quadrado dessa terra, onde hoje moramos, trabalhamos e convivemos, há uma história de intervenção. A cidade não foi simplesmente erguida sobre seu relevo; ela foi moldada, reconfigurada, aterrada e cortada. O Rio de Janeiro é, em grande medida, um produto da vontade moderna de “dominar a natureza” — uma natureza que, no entanto, resiste e se recria.

 

O ato de aterrar, uma das intervenções mais contundentes na formação do espaço, marcou a expansão urbana desde os primeiros momentos da colonização até os projetos modernos que desenham os contornos da cidade. Dos aterros na região portuária aos novos aterros na zona oeste do município, a paisagem carioca foi alterada para “criar espaço para o novo” — para o asfalto, para as moradias e os centros comerciais. Onde antes havia manguezais, brejos e lagunas, surgiram bairros, avenidas e praias artificiais, cujas fundações não têm outro princípio senão a alteração radical da geografia.

 

O Aterro do Flamengo, por exemplo, é um ícone dessa atividade. Avançamos sobre o mar, redesenhando a orla, eliminando lagunas, várzeas e brejos que foram drenadas, aterradas e transformadas em um espaço urbano que, ainda que belo e funcional, carrega em suas entranhas as marcas dessa agressão. Pode-se ainda questionar que no passado não se sabia das consequências dessas ações, mas o que surpreende é que a mesma prática se reproduz hoje na frente de expansão da cidade com os aterros na baixada de Jacarepaguá, Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes com grandes empreendimentos imobiliários até a áreas da Vargens Pequena e Grande.

 

Os desmontes, por outro lado, são as cicatrizes visíveis da natureza que foi quebrada para abrir caminho para o suposto progresso urbano. No Rio de Janeiro, muitos morros e serras, que antes estruturavam e definiam a cidade, foram cortados, perfurados e desmantelados para dar lugar às construções, estradas e infraestrutura. O mais emblemático desses desmontes é o desmonte do Morro do Castelo, que transformou a paisagem da região central do Rio, não só alterou o relevo, mas também apagou uma parte significativa da memória histórica da cidade, dando lugar à modernidade e aos novos bairros do centro.

 

Além de suas implicações geográficas, os aterros e desmontes têm profundas consequências sociais e ambientais. A alteração das águas das baías, a destruição de habitats costeiros e a criação de áreas de risco em encostas revelam a face trágica de uma paisagem que é frequentemente esquecida em sua sensível dinâmica.

 

As transformações do Rio de Janeiro não são apenas físicas, mas também culturais e sociais. Em muitos desses aterros e desmontes, surgiram novas formas de vida urbana. Mas, assim como a cidade foi se expandindo sobre o mar e sobre a terra, também foram se esvaindo outras formas de ser e viver. As áreas antes ocupadas por pescadores, por comunidades tradicionais e por agricultores foram sendo substituídas por condomínios de luxo, shopping centers e avenidas imponentes.

 

A cidade do Rio de Janeiro, portanto, é um palimpsesto, uma folha de terra reescrita incessantemente por diversas fases, intencionalidades e interesses. O que antes era uma baía rica em mangues e restingas, hoje é um conjunto de bairros e avenidas que se estendem sobre o mar, fazendo do litoral um ponto de atrito com o urbano. O mar, que invade a cidade com suas marés e ressacas, as encostas que deslizam, os rios que transbordam, lembram que as dinâmicas da paisagem nunca são completamente dominadas. A paisagem é, antes, um campo de forças onde o atrito mantém uma constante mutação. E assim, a cidade do Rio de Janeiro segue, eternamente marcada pelas cicatrizes de sua construção.

A face oculta sob a bela plumagem da paisagem do Rio de Janeiro com suas montanhas florestadas e baixadas litorâneas, expõe-se em desastres de forma complexa e cruel. Por trás da beleza da cidade, existe uma produção do espaço geográfico marcada por riscos constantes, especialmente de deslizamentos de encosta e as inundações. Com o crescimento populacional e a falta de planejamento urbano, sobretudo pela quase inexistente política de habitação, ao longo das últimas cinco décadas, o risco têm se intensificado com as chuvas fortes e o urbanismo ordenado pela lógica do mercado imobiliário. A relação com o sítio urbano da cidade se trona dramática, quando os desastres destroem vidas, bens e parte da cidade, revelando, sobretudo, a fragilidade das áreas mais vulneráveis.

 

Na última metade do século XX e nas décadas mais recentes, as encostas e as áreas de morros da cidade foram palco de tragédias recorrentes. O Morro do Borel, na Tijuca, os bairros do Cosme Velho e Santa Tereza e o Morro do Vidigal, na Zona Sul, são apenas alguns exemplos de locais que, ano após ano, se tornam vítimas de deslizamentos de terra. A crise de habitação na cidade e a lentidão histórica das respostas para lidar com o risco geológico transformaram muitos espaços em áreas extremamente vulneráveis. Nossos morros, densamente povoados, e as baixadas alagáveis, viram suas comunidades serem soterrados pela lama durante os períodos de chuvas, com tragédias ocorrendo em sequência, desde 1967, 1988,1996, 2003, 2010, 2018, 2019 e a última em 2023.

 

Deslizar é algo natural das montanhas cariocas sob o clima tropical, o que não é natural é ter morador embaixo. O risco é uma construção social, produto da ausência das políticas de habitação na cidade. Uma cidade que não prioriza o habitar, o viver bem, mas sim, obedece a lógica do mercado imobiliário, que se utiliza da mais valia, da renda diferencial, do valor de troca dos imóveis, para crescer, ou do crescimento, para lucrar. Morar bem no rio de Janeiro não é um direito da população, é um privilégio de poucos.

 

Da mesma, forma, também provocado pelo crescimento “ordenado”, outro tipo de risco: as inundações, assolam as populações cariocas, sob as fortes chuvas, nas áreas de baixadas. Enquanto as encostas desabam, as áreas baixas da cidade se tornam um verdadeiro cenário de caos quando as chuvas caem de forma torrencial. As antigas áreas de brejos e mangues aterradas ao longo dos séculos, como o exemplo clássico da Praça da Bandeira, são a regiões mais suscetíveis às enchentes. Os bairros aí localizados se tornam, após qualquer chuva mais forte, verdadeiros brejos revividos, áreas que, historicamente, enfrentam problemas de drenagem e acabam alagadas sob os fortes temporais normais do clima tropical. Esses alagamentos não apenas paralisam a cidade, mas afetam a vida de milhares de moradores que veem suas ruas transformadas em lagos e torrentes.

 

Na Zona Sul, o aterro do Jockey Clube sobre as áreas brejosas ao pé da Serra da Carioca nos bairros do Jardim Botânico e Gávea mantém-se como uma barreira às águas que descem do maciço e garantem as inundações da rede viária sob as fortes chuvas. O excesso de impermeabilização, a ausência de áreas de infiltração ou de repouso das águas induzem o acúmulo excessivo das águas pluviais, fazendo com que áreas baixas fiquem submersas. Para uma cidade costeira, isso é realmente um paradoxo. As Zonas Norte e Oeste, onde as baixadas são mais amplas e a cidade se expande, garantem inundações sazonais para seus assentamentos urbanos em plenos solos, chamados hidromórficos, que como o próprio nome diz, foram formados sob nível freático alto. O que não se pergunta é como construíram loteamentos e extensas áreas de moradia nessas condições ambientais? Brejos sempre alagam, portanto, pavimentá-los e ocupá-los é uma nítida construção de risco. Mas a lógica rentista do espaço urbano não corresponde a lógica da leitura da paisagem e sua funcionalidade, a qual deveria embasar o planejamento.

 

Em paralelo, algumas tentativas municipais (dependendo da gestão) tem preparado a cidade para lidar com essas questões, avançando em obras de drenagem, sistemas de alerta e contenção de encostas. Porém agir nas consequências ajuda, mas não resolve. Ações como restauração das matas ciliares, desassoreamento de rios e obras de contenção em várias áreas de risco são algumas das estratégias adotadas. No entanto, a chave para a solução dessas questões, passa necessariamente pelas políticas preventivas que trazem qualidade de vida ao cidadão, buscando planejamento urbano e principalmente política de habitação. A ocupação baseada na cidade como mercadoria continua sendo um problema para o carioca.

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