Vale lembrar como era a divisão de tarefas entre os profissionais que atuavam nos bondes. O motorneiro conduzia o carro; era o piloto, sempre atento ao trânsito e ao sobe-e-desce dos passageiros. O condutor, esse tinha que possuir muita energia! Ele ficava de olho nos ‘pingentes’ – que permaneciam nos estribos e eram hábeis em pular do bonde em movimento – e cobrava as passagens. Depois, puxava uma corda conectada ao mostrador na frente da cabine, acima do motorneiro, onde o número de passagens pagas era exibido. Às vezes, subia no bonde um terceiro personagem, o fiscal, para conferir aquele ‘marcador de passagens’ e registrar as cobranças. Diziam as más línguas que ainda assim, alguns cobradores tiravam uma parte das cobranças para si. Os condutores circulavam para fazer a cobrança; inclusive com o bonde em movimento, circulando pelos estribos – mesmo quando havia passageiros ‘pendurados’ ali. Agarravam-se aos balaústres, às vezes levando notas e moedas nas mãos. Era uma atividade que exigia muita habilidade, paciência e coragem. E os passageiros? Quem viajava sentado estava mais seguro, mas quando faltava lugares, muita gente ia pendurada nos estribos, mesmo. Nesta foto, um daqueles retratos de grupo mais que especiais, feito à rua Senador Eusébio, em 1924.
Como se vê, nosso Augusto Malta gozava do prestígio dos passageiros, que aparentemente aceitavam bem a proposta de posar para um ‘click’. O bonde parou para a foto! Aquele pedacinho da cidade parou no tempo, literalmente. Momento antológico, o que foi eternizado nessa chapa. E aqui poderíamos nos perguntar, como um exercício de imaginação: você consegue pensar nestas pessoas como um antepassado seu? Imaginar que seus pais, avós, bisavós e até tataravós se assemelham a estas figuras na fotografia?
Agora poderemos melhor apreciar as retratados na cabine frontal do bonde. Destaque para o compenetrado motorneiro de olhar firme e sereno e sem tirar as mãos dos controles; cercado por outros cidadãos; todos, sem exceção, fitando a objetiva da câmera. Que direção de fotografia! E fica uma pergunta: quantos pares de olhos você vê, neste detalhe?
Nesta fotografia posada, onde o fiscal passa ao condutor – que tem as notas dobradas longitudinalmente e presas entre os dedos – uma pequena prancheta. Vale observar três aspectos no registro de 1958: a curiosidade dos passageiros que se voltam todos para trás, como que a posar para a foto; a presença feminina, bem ao meio da imagem, algo mais raro em décadas anteriores; os anúncios junto ao teto do bonde – destaque para o par de olhos, um clássico desde muito, cujo visual e texto foi se adaptando, ao longo das décadas: “Assim como me vê, são vistos todos os anúncios neste veículo.” Era um anúncio da empresa de publicidade nos bondes.
Chovera há pouco e o bonde acabara de parar na praça da República. A presença do fotógrafo mobilizou alguns dos presentes. É o bonde “Praça XV Nov.” com dois carros, de primeira e de segunda classe. Logo atrás, vem outro, o “Barcas”. Ao fundo, no alto da fachada, quase ao centro do quadro, há um letreiro da “Confeitaria Estrada de Ferro”. Este sempre foi um negócio de destaque, desde o “Café Braguinha” de 1824 e a “Confeitaria Carceller”, de 1847, até às nossas “Casa Cavé” e “Confeitaria Colombo” que seguem firmes. Quantas delícias não foram produzidas e consumidas com muito gosto nesta cidade, e quem não teve, ou tem, a sua confeitaria predileta? Na fotografia, além da arquitetura, vemos as árvores e um poste de iluminação ostentando belo trabalho decorativo em ferro e que também sustenta os cabos que conduzem a energia elétrica para os bondes. E as pessoas, quantas pessoas, cada uma com a sua história e o seu destino.
No detalhe, duas particularidades podem ser observadas. A fotografia foi feita pelo lado esquerdo do bonde – oposto àquele que servia para a circulação dos passageiros. Por isto, vemos o “travessão arriado”, aquela barra na altura dos assentos, e o “estribo rebatido”, o que dificultava — um pouco — a atuação dos pingentes... O motorneiro está em seu posto na cabine, concentrado na direção e os três cidadãos que posam para o fotógrafo, com muito gosto, são integrantes da equipe que atuava nos bondes.
Esta fotografia é uma obra prima, a figurar em qualquer galeria de autorretratos de fotógrafos. Augusto César Malta de Campos, alagoano de Mata Grande nascido em 14 de maio de 1864, era um dos dezenove filhos de Claudino Dias de Campos e Blandina Vieira Malta de Campos. Embora os pais tivessem a intenção de torná-lo sacerdote, seguiu para o Recife onde alistou-se no Exército. Imbuído dos ideais republicanos, chegou ao Rio de Janeiro em 1888 indo trabalhar no comércio. Em 1900 trocou sua bicicleta por uma câmera fotográfica e em 1903, através de decreto municipal do prefeito Pereira Passos, tornou-se o primeiro fotógrafo da Prefeitura do Distrito Federal, lotado na Diretoria Geral de Obras e Viação. Em paralelo, atendeu a outro clientes; para a Light realizou extensa documentação que se estende às regiões onde foram construídas as usinas hidrelétricas. Vamos ao autorretrato: o sol se punha por detrás do fotógrafo e projetou no solo a sua sombra com sua câmera no tripé, junto ao bonde. Cena inusitada que o fotógrafo assumiu, e registrou. São dois retratos em um!
E se aproximarmos o nosso olhar dos pés daqueles cidadãos que viajam no estribo do bonde? Cada um deles veste um diferente modelo de calçado; haja diversidade! E como sempre ocorria naqueles tempos, há um menino descalço.
O Rio adentrava os anos 1950, nesta fotografia. O transporte por bondes já estava declinando, face ao aumento dos ônibus e automóveis. Mas esse meio de transporte ainda gozava da preferência de muitos cariocas, que não se furtavam a circular ‘pendurados’ nos estribos.
Haja sangue frio para encarar aquela aventura! Que para a maioria, era algo natural, inevitável até. E assim iam os cidadãos do Rio, completamente misturados nos estribos – embora ainda separados entre os carros de primeira e segunda classe. No detalhe, há desde um operário com seus tamancos e o macacão de trabalho, até um oficial com seu uniforme impecável, e de quepe!