Memórias afetivas e gastronômicas dos meus subúrbios cariocas

*O texto a seguir é um relato pessoal da cientista social Jade Moreira

Fábrica Piraquê, do outro lado da via férrea, em Turiaçu, vista do Parque de Madureira. Imagem retirada do site http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com/2017/05/os-suburbios-de-turiacu-rocha-miranda.html

O primeiro sabor do subúrbio que senti, foi na verdade um cheiro. Lembro porque já colecionava memórias, em 1997, na Rua Leopoldino de Oliveira em Turiaçu. Todos os dias às 16h o cheiro doce da fábrica da Piraquê entrava pontualmente pelas janelas e portas da casa, nos deixava mole, cheios de vontade, chegando a fazer meu irmão flutuar em fumaça de biscoito até o prédio vermelho cor de telha.

– Sobrou biscoito aí moço? 

Pra nós o dadivoso lanchinho costumava chegar junto ao barulho do sino da igrejinha, às 18h, misturados com os louvores no rádio am/fm dos vizinhos. Comer Mirabel e Presuntinho grátis, é privilégio de ser de Turiaçu (bairro de passagem entre Madureira e Rocha Miranda). É bom quando existe espaço para o corpo tomar essas decisões deliciosas, biscoitinho e groselha em horário comercial com barulho de casa, percebo agora. Sabores que dilatam o tempo.

Os funcionários da Piraquê sempre tinham uns pacotes de biscoito, com defeitos jamais perceptíveis, que a fábrica descartava e eles distribuíam para fila de crianças e mães com bebês no colo, na Conselheiro Galvão. Todos os dias no pôr do sol as pessoas faziam fila na porta da Piraquê. Sabores que organizam a comunidade, como nas festas de rua.

Senti o sabor da groselha em outros copos – caipifruta um clássico proibido para menores (ainda bem que na pracinha da igreja de Santa Bárbara a maioridade era geralmente reduzida, e o drink parecia querer adoçar boca de criança) – leite condensado, guaraná, groselha, pêssego em caldas, muito gelo, muita calda de sorvete no copão de plástico e cachaça ou vodka — a mais barata da SENDAS —, liquidificador. Barraquinhas de lanche piscando espetinho com maionese temperada, inovação, melhores custo benefício do mercado. Depois era ver se esse furdunço ficava do lado de dentro do corpo no alvoroço dos brinquedos de um parque de diversões improvisado na pracinha.
Brincar de se sacudir com a barriga cheia é um ritual inscrito em nossos corpos sorridentes.
Feijoadas e caldos de mocotó seguidos de samba. Os sabores suburbanos são sabores sacudidos e compartilhados. Espécie de festa onde tudo dança, das panelas às pernas.


As pernas das mulheres, levando quentinhas de alumínio para pátios de obras, voltando pra casa com dinheiro no bolso. As pernas da vó, contidas enquanto as mãos dançavam decorando as tortas salgadas com topos geometricamente organizados, milho, ervilha, batata palha, cheiro verde, terrenos de maionese e rosas feitas com tomate fatiado. As pernas das crianças correndo na direção da coleguinha que tinha a melhor mãe do mundo, a que mandava pizza de sardinha pra festinha da escola.
Não esqueço também dos fins de semana em Rocha Miranda, na rua Jacê, lembro da casa onde meu pai tinha no quintal árvore com rede, ainda degusto a memória de tomar feijão na caneca antes do almoço, com muita pimenta desde criancinha. Com banana e farinha também.

Nos subúrbios era normal estar brincando suado na rua e de repente alguém aparece no portão com uma mangueira pra lavar a calçada, logo era o sabor da água de bica tomada com mãos sujas que dava alívio e gosto a vida. 

Quentinha Colorida de Acarajé. Acervo da autora

Sabores que movem as quentinhas de alumínio redondas com tampa de papelão, sempre feitas por alguma vizinha, dona de casa. Quantas vezes nos salvaram, seja  porque o gás acabou, porque era baratinho ou porque era comida caseira. Segura comensalidade suburbana, não eram essas besteiras de lanche, na verdade eram as salvações das noites em que necessitávamos comer alguma coisinha. Bem servidas, bem misturadas, composição perfeita e o cheiro que geralmente a gente sente no bairro é o cheiro dessa comida feita ali e servida ali. É só gritar a Andrea no portão dela ou ligar pra casa dela, almoço servido. As melhores e mais comuns receitas compunham o prazer de comer comida familiar. Sabores que aproximam.

No subúrbio, na zona norte do Rio, em casa ou nas calçadas, a alquimia é feita pelas donas de casas suburbanas. A preguiça depois de almoçar uma quentinha em Turiaçu, Rocha Miranda ou no Engenho de Dentro nos faz viajar, aquela comida além de saciar de forma tão íntima as pessoas nas casas e pátios do subúrbio, isso retroalimenta as cozinheiras, as realidades financeiras das mulheres que fazem arte com panelas, colheres e muito alho, em cozinhas simples, nas suas cozinhas.

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