Aimberê

O último tamoio, de Rodolpho Amoedo, Acervo do Museu Nacional de Belas Artes
Inspirado no poema “A Confederação dos Tamoios”, de Gonçalves de Magalhães, Amoedo retrata a cena em que ao ser morto, Aimberê é amparado por José de Anchieta.

Aquele que é considerado o maior líder da resistência indígena do Brasil à colonização portuguesa, Aimberê, é também sobre quem temos menos informações e fontes históricas. A rigor, apenas sabemos deste guerreiro tupinambá por um pequeno trecho de uma carta deixada pelo jesuíta José de Anchieta. Nesse documento, o religioso conta em detalhes o que ocorreu durante o tempo que passou na aldeia de Ubatuba junto com seu superior eclesiástico Manoel da Nóbrega, quando tentavam negociar uma trégua com os tamoios no ano de 1563. O episódio ficou conhecido como a “Paz de Iperoig”.   

Essa fonte primária fornece as poucas informações sobre o homem que liderou milhares de indígenas confederados nos esforços de combate contra os lusos entre Rio de Janeiro e São Paulo na década de 1560. Por isso, muitas vezes a “história” de Aimberê é contada a partir de fontes romanceadas, principalmente o poema “A Confederação dos Tamoios”, de Gonçalves de Magalhães. As informações que temos dessa obra sobre Aimberê são inventadas, apesar de muitos tomarem os eventos narrados ali – como a citação de que Iguaçu era o nome de sua mulher – como fatos. 

A verdade é que não sabemos muito sobre essa pessoa. Nem mesmo se seu nome realmente foi Aimberê, uma vez que Anchieta o nomeia com a variante “Aimbiré”, informando que o epíteto em tupi significava forte, rijo, inflexível. Não sabemos como, nem quando morreu – se antes, durante ou depois da batalha decisiva de Uruçumirim em janeiro de 1567. Tampouco sabemos de qual aldeia tupinambá do Rio de Janeiro ele era oriundo. Entretanto, sabemos que ele existiu, e que sua importância foi tamanha a ponto de continuar demonizado pelas autoridades portuguesas anos após a conquista da Guanabara.  

A proeza mais conhecida de Aimberê naqueles anos foi a organização do ataque geral a Piratininga em julho de 1562, evento que só não foi mais bem-sucedido pelas traições cometidas por parte dos tupiniquins paulistas. A investida contou com o apoio de diversas etnias indígenas, gerando assombro entre os colonos de São Vicente. O episódio foi determinante para a atitude dos padres se dirigirem para Ubatuba. Como relata Anchieta, os tamoios da costa apareciam tanto por mar quanto por terra, destruindo as vilas, libertando os escravos e matando os portugueses que encontravam. Sem forças para resistir por muito mais tempo, as autoridades portuguesas decidiram apelar para a diplomacia. Esperavam com isso, segundo o próprio Anchieta, “dar sossego a esta Capitania, que anda deles [tamoios] tão infestada, que já quase não pensam os homens senão em como se hão de ir e deixá-la”. Queriam especialmente parar as “grandes opressões que dão a esta terra uns nossos inimigos chamados Tamuya, do Rio de Janeiro”.

Os padres viajaram até Iperoig, um dos “primeiros lugares dos inimigos” – nome de uma das aldeias tupinambás que ficavam onde hoje se localiza a cidade de Ubatuba. José de Anchieta era exímio falante do tupi e, assim, os dois padres conseguiram ser bem recebidos pelos moradores. Eles ficairam na aldeia à espera dos líderes tamoios, enquanto os indígenas de Iperoig iriam a São Vicente em uma troca de reféns – e como garantia de vida dos jesuítas. Ao mesmo tempo, o outro navio partiriam com “cinco dos mais estimados [tamoios], e se foram no caminho do Rio de Janeiro, onde está a maior força dos seus, e o contrato dos franceses para acabar as pazes com eles”. Os padres perceberam que a missão de paz da qual eles eram mensageiros tinha refreado um grande ataque com mais de duzentas canoas, que possivelmente assolaria a vila de São Vicente. 

Anchieta em Ubatuba, Bernardo Calixto

O primeiro líder dos tamoios a chegar foi Pindobuçu. Este havia ido visitar um irmão e não sabia da presença dos padres. A princípio mandou os padres irem embora, apenas após muito empenho e discursos Anchieta conseguiu convencê-lo. Entretanto, naquele momento não era Pindobuçu quem decidiria qualquer trégua com os portugueses. Dias depois, alertado pelos mensageiros que foram ao Rio de Janeiro, dez canoas repletas de guerreiros chegam a Ubatuba. Era o pelotão de Aimberê que vinha da Guanabara para conversar com os padres. Era ele o líder com quem precisavam negociar e que representava as aldeias do Rio de Janeiro. Aimberê vinha acompanhado de um genro francês, que havia lhe dado uma neta e o aconselhava. 

Segundo Anchieta, Aimberê era “homem alto, seco, e de catadura triste e carregada e de quem tínhamos sabido ser muito cruel”. Vestido com uma camiseta e deitado em uma rede cercado por seus guerreiros, Aimberê desandou a falar “com danado ânimo”, enquanto bolia com seu arco e flecha, causando temor nos padres. O líder tamoio relatou aos enviados de São Vicente o quanto já havia sofrido nas mãos dos portugueses e como ele mesmo já havia sido enganado e preso em outros tempos, “com pretexto de pazes, mas que por sua valentia, com uns ferros nos pés, saltara do navio e havia escapado de suas mãos, e com isto arregaçava os braços e bulia com as flechas”. Anchieta, com seu hábil discurso, a tudo rebatia com promessas de amizade, mas Aimberê “se mostrava incrédulo e duro, trazendo à memória quantos males lhe haviam feito os nossos”.

Aimberê sabia negociar e impunha condições para que qualquer acordo de paz fosse selado, insistindo “que lhe havíamos de dar a matar e comer dos principais de nossos índios que se haviam apartado dos seus, assim como em outro tempo havíamos feito a eles”. Ele queria a cabeça daqueles que considerava traidores dos tamoios, que haviam lutado contra seu próprio povo em favor dos lusos. Contudo, tal proposta não foi aceita pelos jesuítas, que disseram ser aqueles seus discípulos, “que Deus não queria isso” e que, portanto, tal pedido estava fora de cogitação. Aimberê respondeu: “Os contrários não são Deus; vós outros sois os que tratais as cousas de Deus, haveis de no-los entregar”. De parte a parte não houve acordo, e o morubixaba-guaçu decretou: “Pois que sois escassos dos contrários, não tenhamos pazes uns com outros”. 

Um guerreiro tupinambá, por John White

Com esse impasse e como forma de ganhar tempo, foi feita uma proposta de partir para São Vicente e consultar as autoridades portuguesas, porque não tinham licença para negociar tal condição. Pindobuçu, que a tudo assistia calado, já ancião, interveio imediatamente aceitando a proposta, no que os outros acabaram por consentir. Ficou acertado que o próprio Aimberê iria a São Vicente se encontrar com os indígenas trocados pelos padres e as autoridades portuguesas, “com cujas palavras aquele principal vinha já manso e entrou em estas vilas, pregando que folgava muito com as pazes” e acabou o líder dos tamoios, tão temido, “recebido com muita alegria e festas dos nossos, de que ficou mui satisfeito.” Não fica claro o que mais ocorreu na ida de Aimberê a São Vicente na conclusão da “Paz de Iperoig”, mas é possível que ele tenha libertado indígenas escravizados nesse acordo e, por fim, voltou à Guanabara para dar conta do acordo aos outros líderes. 

A atuação dos jesuítas em Ubatuba foi decisiva. Além da trégua que propiciou aos portugueses, serviu principalmente para enfraquecer a união de forças entre aldeias que tanto ameaçava os lusos daquela capitania. Aimberê perceberia que a “Paz de Iperoig” era apenas um pretexto para ganhar tempo. No ano seguinte, uma armada vinda de Lisboa e comandada por Estácio de Sá entraria na Guanabara para tentar selar a conquista e os tamoios foi à luta, de novo com Aimberê dando o exemplo dos capitães indígenas, à frente do combate. Se por um lado, sobre sua morte, há mais especulações que certezas, por outro, é certo que em vida Aimberê foi uma das maiores lideranças tupinambá de que temos registro.

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