Nordestinos de nascimento, mareenses de criações

Comecei a inventariar as comidas que conheci nas viagens ao Sertão desde menina… Nem eu tinha ideia de como aquilo ficou marcado na memória. Uma economia agropastoril serve pratos de carne e derivados de leite, certo? De pronto listei a paçoca de carne-seca, o arroz de leite (feito com arroz da terra, uma variante de arroz vermelho rajado introduzida pelos portugueses no século XVI, quase exclusivamente cultivado no interior da PB e RN) com queijo coalho regado com a “graxinha” da galinha de capoeira da minha avó, o rubacão, o cará com manteiga de garrafa servido no café da manhã na casa do tio. Na casa dos parentes, não havia jantar. O costume mandava servir um ajantarado: uma sopa, mugunzá, cuscuz de milho com leite e açúcar ou com ovo frito, na sua versão salgada, ou ainda as bolachas de sal (que descobri serem de origem árabe, aliás, como muitas receitas regionais) fritas na manteiga e regadas com leite, o que produz uma papa entre dura e molenga. Sem falar nas tapiocas e seu recheio tradicional: manteiga de garrafa ou coco ralado. O Nordeste são vários. E há similaridades de dietas, mas no sertão há iguarias únicas, como os queijos coalhos, hoje disseminados pelo Sul, e a joia da coroa: o queijo-manteiga. Essa receita celestial sofre uma debacle na época das secas, quando o gado morre de sede e o leite escasseia.

O texto acima é de Roni Filgueiras, jornalista e ex-moradora da Praia de Ramos, filha de migrantes nordestinos. O texto foi publicado em seu Facebook, em 26 de junho de 2023, e faz referência às suas memórias afetivas da infância a partir da comida — tema de sua dissertação de mestrado: “Cabra Marcado para Comer: a assimilação do Nordeste na Favela de Ramos, uma receita de subjetivações, memórias e resistência.” (2018).

Batizado de Roni Filgueiras na favela de Ramos, out/1966. Foto: acervo pessoal Roni Filgueiras.

Roni estudou as receitas, hábitos e memórias de mulheres migrantes, vizinhas de seus pais, com quem conviveu na infância. Algumas estão na foto de seu batizado, em 1966, quando morava na Praia de Ramos. A favela tinha uma forte presença nordestina, assim como outras da Maré. Foi nas décadas de 1960 e 1970 que o maior fluxo de migração passou a ser de pessoas vindas da região Nordeste do país, muitas delas fugindo da seca.

Moradores da favela de Ramos, junho de 1972. Fundo Correio da Manhã, Arquivo Nacional

A família de Eliana Sousa Silva, coordenadora da Redes da Maré e ex-presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda, foi uma das famílias que migraram por essa razão:

Vim da Serra Branca, que é uma cidade do Cariri paraibano. É uma região muito seca, e eu vim justamente por conta daquele período, década de 70, por conta da seca. Trouxe essa migração grande para o Sudeste. Eu vim justamente nessa migração, porque minha cidade estava há 7 anos sem água e foi ficando difícil para o meu pai manter cinco filhas e um filho, e a minha mãe. Ele tentou várias vezes vir pro Rio de Janeiro, trabalhar sozinho aqui. Mas o meu pai era muito família e ele não se adaptava a essa ideia de ir lá uma vez por ano. Como a gente sabe, os nordestinos ficam trabalhando o ano inteiro, vai uma vez por ano, faz um filho lá uma vez por ano, volta. O meu pai já tinha seis filhos e ele queria muito ficar junto da família. Então foi aí que a gente veio pra Nova Holanda e na Nova Holanda já moravam dois tios meus, meu tio Jonas e meu tio Joaquim…

Atualmente, segundo dados do IBGE, os nordestinos compõem 25% da população da Maré. Tomando o conjunto do estado do Rio de Janeiro, o número é de apenas 8%. Na última contagem, feita em 2015, eram quase 40 mil mareenses nascidos no nordeste. Em Rubem Vaz são quase 40% dos moradores, e no Parque União 44%, de acordo com a matéria “Um pedacinho do Nordeste”, de Hélio Euclides

Vale dizer que, embora muitos dos moradores da Maré sejam cariocas de nascimento, como Roni Filgueiras, eles foram criados com os hábitos e sotaques dos diferentes estados da região nordeste, como Ceará, Bahia, Pernambuco, Paraíba — deste último estado, vêm cerca de 10% dos mareenses. Cada família com histórias, sotaques e identidades diversas, mas que no “Sul Maravilha” acabam compondo um colorido bordado, artesanato tão identificado com essas raízes.

Num processo comum a muitos que tentam a vida em outro lugar, há aqueles que migram primeiro, chamando parentes e amigos na sequência e estabelecendo redes de acolhida aos que chegam depois. Como nos contou, Eliana Sousa Silva chegou da Paraíba ainda criança, em 1970. Sua cidade, Serra Branca, é a mesma de nascimento de muitos mareenses:

Meu pai veio primeiro, aí viu que não conseguia ficar aqui sozinho, ele adoeceu, também. E aí ele resolveu mandar buscar a família. Então, a gente veio numa rural de um outro amigo dele, que morava aqui. Milton Lobo, o nome dele. A gente veio numa rural, ele contratou esse amigo para trazer a gente numa rural. A viagem foi bastante longa: sei lá, dois dias e meio, parando no meio do caminho.

Casa Paraibana – loja na Nova Holanda especializada em produtos do Norte e Nordeste do Brasil – julho/2023. Foto: Tainara Amorim.

Dona Jozefa mora no Parque União desde o começo da década de 1960, quando chegou com seu marido, ambos nascidos e criados na Paraíba. O casal migrou em busca de melhores condições de vida. Ela relembra como foi sua chegada à Maré: 

Eu nasci na Paraíba e moro na Maré há 52 anos. Na verdade, o Parque União, a metade, é quase da minha família, tem muita gente da minha família lá. Meu pai era da roça, trabalhava na roça, fazia arreio de cavalo, essas coisas. Era tipo um artesão, e muito bom. Minha mãe era costureira. Eu cheguei, fiquei 15 dias na casa do meu irmão, num beco ali da Teixeira Ribeiro, dali eu fui para o Parque União, para a casa da minha cunhada que morava na rua da Praia.

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